Volta da "diplomacia de canhoneiras"?


Antonio Ruy de Almeida Silva

A recriação da IV Esquadra dos EUA, subordinada ao Comando Sul, cuja área de atuação engloba o Caribe e as Américas Central e do Sul, tem suscitado um caloroso debate nesta região.

Segundo declarações do presidente venezuelano Hugo Chávez, as atividades dessa esquadra constituem "uma ameaça". Por sua vez, o presidente Lula determinou que o chanceler brasileiro questionasse o Departamento de Estado quanto aos motivos que levaram à sua recriação.

O embaixador dos EUA no Brasil procurou acalmar os ânimos, afirmando que a reativação da IV Esquadra apenas refletia o compromisso dos EUA em trabalhar com as nações da região, para responder a desastres naturais e prestar assistência humanitária, assim como participar de operações antidrogas ou de exercícios navais.

Realmente, uma força naval pode realizar todas as tarefas descritas pelo embaixador, mas essas não são as principais tarefas de um Poder Naval. A estratégia marítima norte-americana publicada no ano passado é clara:

"Nosso desafio é aplicar o Poder Naval de forma a proteger os interesses vitais dos Estados Unidos e, ao mesmo tempo, promover uma maior segurança coletiva, estabilidade e confiança. Enquanto a defesa da pátria e a derrota de adversários na guerra continuam sendo os principais propósitos do Poder Naval, este deve ser aplicado de forma mais abrangente, se desta forma servir aos interesses nacionais".

É claro, portanto, que a IV Esquadra foi recriada para a defesa dos interesses norte-americanos na região. Isso não quer dizer que essa reativação seja por si só uma ameaça aos demais países, embora o histórico de intervenções dos EUA no Caribe e, em menor escala, na América do Sul aumente as desconfianças.

Após a construção do Canal do Panamá, o Caribe se tornou estrategicamente mais importante para os EUA, pois o seu controle garante a segurança das rotas do Atlântico e do Pacífico que nele se concentram para cruzar o canal.

Tendo perdido as bases no Panamá, os EUA vêm realizando, periodicamente, a operação Panamax, de caráter multinacional, inclusive com a participação do Brasil, visando à defesa do canal contra ameaças ao seu funcionamento.

No entanto, já existem especulações de que, com o fechamento da base norte-americana em Manta, no Equador, o Governo do Panamá estaria interessado em mudar a legislação para ter de volta uma base dos EUA em troca de benefícios financeiros.

Outras ameaças aos interesses americanos na região são o tráfego ilegal de drogas e pessoas e o terrorismo. Em relação ao combate ao narcotráfico e à imigração clandestina, a Guarda Costeira dos EUA é quem desempenha o principal papel.

Em relação ao terrorismo, as principais preocupações estão na Tríplice Fronteira, nas relações da Venezuela com países que, segundo o governo norte-americano, apóiam o terrorismo, como é o caso do Irã, e na possibilidade de ligação dos movimentos guerrilheiros com grupos terroristas de outras regiões.

A importância do continente sul-americano para os EUA também cresceu, com relação aos recursos naturais, principalmente devido ao petróleo da Venezuela e à descoberta de novas e importantes reservas petrolíferas na Zona Econômica Exclusiva (ZEE) brasileira.

Além do mais, o comércio com a região vem crescendo, e o aumento do preço do petróleo onerou o custo do transporte marítimo, o que sinaliza para o incremento do comércio regional em detrimento das trocas com países mais distantes.

A esses aspectos se soma a desenvoltura do Brasil na criação de um espaço político, econômico e estratégico sul-americano, sem a participação da potência do Norte. No campo estratégico-naval, o Brasil negocia com a França a compra de submarinos convencionais, com a promessa de cessão de tecnologia que contribua para o desenvolvimento do submarino brasileiro de propulsão nuclear.

Embora os EUA não vejam com bons olhos a possibilidade do desenvolvimento dessa tecnologia pelo Brasil, as relações entre suas Marinhas têm sido mantidas em ótimo nível. No entanto, os dois países têm visões distintas em aspectos da Lei do Mar, que os EUA ainda não ratificaram.

Eles consideram que as águas além do mar territorial são águas internacionais, nas quais os países costeiros possuem alguns direitos estipulados na convenção, permitindo, portanto, aos demais países realizarem manobras militares nessas águas.

A lei brasileira, por outro lado, determina que esse tipo de atividade só pode ser realizado na ZEE com autorização do governo. Tal exigência ganha força com as sucessivas descobertas de importantes reservas de petróleo, cada vez mais próximas do limite exterior dessa zona.

A recriação da IV Esquadra tem sido criticada em alguns setores ligados à Marinha dos EUA, que consideram que melhor seria ter estabelecido uma esquadra subordinada ao recém-criado Comando África, onde a instabilidade política é maior. No entanto, entre a África e as Américas, os EUA acharam melhor ficar de olho nas vizinhanças do seu império.

Cabe ao Brasil, portanto, entender que a IV Esquadra é uma realidade com a qual terá que conviver. Tendo sido reativada para defender os interesses dos EUA, ela não significa necessariamente uma ameaça aos países da região.

Existe campo para a cooperação bilateral e multilateral em ações nas quais os interesses dos países venham a convergir, embora haja, também, a possibilidade de conflito onde os interesses possam ser divergentes.

Assim sendo, implementar uma Marinha capaz de lidar com tal dualidade é uma meta que o Brasil deve perseguir, de modo a ter um instrumento capaz de também defender os interesses brasileiros.

Antonio Ruy de Almeida Silva
Contra-almirante da reserva, membro do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (Nest/UFF).

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