Londres faz "leitura aflitiva" dos segredos do Iraque

RTP

As ondas de choque libertadas pela publicação, na Internet, de 391.832 documentos secretos sobre a ocupação do Iraque chegaram este domingo ao núcleo do Governo britânico. Perante o retrato de um país mergulhado num caldo de violência sectária, ingerência de potências e de países vizinhos e instituições mal preparadas, Nick Clegg, vice-primeiro-ministro no Executivo de David Cameron, confessa-se “aflito”.

Publicado entre sexta-feira e sábado no portal da WikiLeaks, o conjunto de quase 400 mil relatórios sobre o quotidiano das tropas dos Estados Unidos no Iraque permite perceber a dimensão dos desafios colocados às frágeis instituições civis e militares que preencheram os espaços esvaziados pela pulverização do regime de Saddam Hussein. Relatos redigidos por soldados norte-americanos entre Janeiro de 2004 e o termo de 2009 revelam um país armadilhado por dentro e a partir de entidades externas, onde as rivalidades sectárias, políticas e entre clãs, assim como a persistência de práticas de tortura e outros abusos generalizados dos Direitos Humanos, põem em causa a própria estratégia de saída sancionada pela Administração democrata de Barack Obama.

O conteúdo dos documentos, reagiu este domingo o vice-primeiro-ministro britânico, comporta “alegações” de uma “séria” gravidade. Para o líder dos liberais democratas, que viabilizaram o Governo de coligação do conservador David Cameron, impõe-se dar “uma resposta ao que se conclui serem alegações muito, muito graves”.


“Podemos lamentar a maneira como estas fugas tiveram lugar, mas penso que a natureza das alegações feitas é extraordinariamente séria. A sua leitura é aflitiva e elas são muito graves. Suponho que a Administração americana queira fornecer a sua própria resposta. Não nos cabe dizer-lhes como o fazer”, afirmou Nick Clegg. Numa entrevista à BBC, o governante britânico, que no passado considerou “ilegal” o alinhamento de Londres com a invasão do Iraque, defendeu a necessidade de fazer uma análise cuidada das informações agora conhecidas. Isto porque “tudo aquilo que leve a pensar que as regras básicas da guerra, dos conflitos e do combate foram violadas, ou que a tortura possa ter existido de uma qualquer forma que foi tolerada, é extremamente grave e deve ser examinado”.


“A verdade”

Sem desacreditar os dados revelados pela WikiLeaks, a Administração norte-americana repete as fórmulas que usou em anteriores fugas propagadas pela organização criada por Julian Assange. Fazendo eco da posição do Pentágono, a secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, condenava, logo na sexta-feira, “a difusão de quaisquer informações” que colocassem “em risco a vida de soldados e civis dos Estados Unidos e aliados”. Ao apresentar o acervo The Iraq War Logs, Assange garantiu que a WikiLeaks quis apenas repor “a verdade”.

Nos relatórios, são inúmeras as histórias da violência que faz o dia-a-dia do Iraque do pós-Saddam Hussein. Das descrições assinadas por quem trava a guerra no terreno fazem parte não só os casos de tortura e execuções sumárias protagonizados pelas forças regulares do país. Estão igualmente registados “mais de 300 casos cometidos pelas forças da coligação” liderada pelos Estados Unidos, como salientou no sábado o fundador da WikiLeaks.


Entre outras revelações, sabe-se agora que, no Outono de 2005, as tropas norte-americanas encontraram provas de conspirações para eliminar vários responsáveis das novas instituições iraquianas. E em Junho de 2006, noutro exemplo das informações em causa, soldados dos Estados Unidos encontraram, no interior de uma cela da esquadra da polícia iraquiana em Husaybah (Oeste do Iraque), vestígios de sangue, uma mangueira de borracha e cabos eléctricos montados sobre uma porta de metal. Descobertas que os próprios operacionais norte-americanos reportaram como “indicações claras” de violações dos Direitos Humanos.


“Uma grave violação do Direito Internacional”

Outra das vozes que se ergueram durante o fim-de-semana foi a do relator especial das Nações Unidas para os casos de tortura. Manfred Nowak falou directamente para a Sala Oval da Casa Branca, apelando ao Presidente dos Estados Unidos para que abra uma investigação. Barack Obama, lembrou o relator, “chegou ao poder com a promessa de mudança”: “O Presidente Obama tem a obrigação de tratar os casos passados”.

Igualmente partidária da abertura de um inquérito, a Amnistia Internacional imputou “uma grave violação do Direito Internacional” às chefias militares norte-americanas, que entregaram “milhares de prisioneiros às forças iraquianas quando sabiam que elas continuavam a torturar”. Na mesma frente, a organização Human Rights Watch veio exigir que “o Iraque persiga os responsáveis por tortura e outros crimes” e que os Estados Unidos “investiguem”.

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