Presidente do Afeganistão se irrita com negociação bilateral entre EUA e Talibã e suspende participação do país no processo de paz

RODRIGO CRAVEIRO - CORREIO BRAZILIENSE

O clima de festa da véspera, com a transferência da responsabilidade sobre a segurança da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) para as forças de Cabul, foi ofuscado, ontem, pela primeira grande crise entre os Estados Unidos e o Afeganistão. O presidente afegão, Hamid Karzai, não escondeu o mal-estar com um anúncio feito na véspera de que a Casa Branca se engajaria em negociações diretas com o Talibã. O diálogo ocorreria em um escritório inaugurado na véspera pelo movimento fundamentalista islâmico em Doha, capital do Catar. 


"Como o processo de paz não é liderado pelos afegãos, o Alto Conselho da Paz não participará dos diálogos no Catar", avisou Karzai, referindo-se ao organismo criado em 2010 pelo governo afegão.

De acordo com o presidente, o processo de reconciliação "apenas beneficiaria as estratégias e metas dos estrangeiros". A frustração de Cabul foi maior pelo fato de a representação do Talibã em Doha ter se denominado Escritório Político do Emirado Islâmico. "Tal alcunha equivale a atravessar uma linha vermelha, pois nega o governo Karzai e a Constituição do país", afirmou ao Correio, por e-mail, o afegão Barmak Pazhwak, especialista do United States Institute of Peace (USIP), baseado em Washington. 


Aimal Faizi, porta-voz da Presidência do Afeganistão, confirmou que Karzai "suspendeu os diálogos sobre o acordo bilateral de segurança com os EUA". "Há uma contradição entre o que o governo americano diz e o que ele faz em relação às negociações de paz", disse. Ele admitiu o descontentamento do presidente com o nome do escritório talibã. "Somos contrários a esta denominação de "Emirado Islâmico do Afeganistão" pela simples razão de que essa entidade não existe", declarou. 


O Departamento de Estado norte-americano pôs panos quentes e desmentiu a rodada de negociações com o Talibã. "As informações sobre uma reunião programada são inexatas", afirmou a porta-voz Jennifer Psaki. Ela garantiu que tal encontro "jamais foi confirmado" e assegurou a coordenação das próximas etapas do processo, em cooperação com o Afeganistão e o Alto Conselho para a Paz. Na tentativa de contornar a crise, o secretário de Estado, John Kerry, conversou por telefone com Karzai e pediu ao mandatário que tentasse "abrandar as tensões". Em visita a Berlim, o presidente Barack Obama declarou esperar que o processo de reconciliação no Afeganistão prossiga, "apesar dos desafios".

Desprestígio 

 
"Karzai teme ser marginalizado, principalmente se já houver um entendimento entre o Talibã e os paquistaneses apoiados pelos americanos", explicou Pazhwak. Segundo o analista, o presidente do Afeganistão sente que perderá o controle da negociação caso os fundamentalistas se engajem no diálogo com os EUA. 


Para Najibullah Lafraie, chanceler do Afeganistão entre 1992 e 1996, a estratégia de Karzai é a de "fazer barulho" para obter concessões. "Mais cedo ou mais tarde, ele aliviará a sua posição", admitiu. 

"As autoridades afegãs estão incomodadas com o nome do escritório em Doha e com declarações de representantes do Talibã", comentou o também professor de ciência política da Universidade de Otago, em Dunedin (Nova Zelândia). Em entrevista à emissora britânica BBC, um delegado do Talibã disse que a maioria dos afegãos não aceita a Constituição e, por isso, a Carta Magna será rejeitada pela facção.


Lafraie aponta vários obstáculos para a estabilidade em seu país natal. "O Talibã insiste em não reconhecer Cabul. Karzai rejeitava a abertura de um escritório político talibã e impunha que o diálogo ocorresse exclusivamente com o seu governo", acrescentou.

"Como o processo de paz não é liderado pelos afegãos, o Alto Conselho da Paz não participará dos diálogos no Catar" 

(Hamid Karzai, presidente do Afeganistão, ao citar o órgão criado por ele para buscar um acordo com o Talibã)

"Existe um entendimento com os paquistaneses de que o Talibã está disposto a negociar e, por isso, teve a permissão de abrir um escritório no Catar. Além da presença de paquistaneses e de talibãs nesse gabinete, Karzai gostaria de ver os EUA apoiarem sua posição na negociação e não se engajarem em conversas diretas com o Talibã."
Barmak Pazhwak, especialista afegão do United States Institute of Peace (Usip, em Washington) 

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