'Sua mãe está morta; se gritar, morremos todos': a fuga de uma sobrevivente do Holocausto

Ariella Pardo Segre tinha apenas três anos quando foi carregada nas costas por um contrabandista de cigarros, que tinha sido pago com um anel de noivado pelo serviço. Era setembro de 1943, o Sol já havia se posto e fazia muito frio. Ao seu lado, em um grupo de refugiados judeus, caminhavam sua mãe, seu pai e seu irmão de sete anos. A jornada da família judia italiana atravessando os Alpes rumo à Suíça por causa da perseguição nazista começava.


Luis Barrucho | BBC News Brasil em Londres

A estrada era estreita e todos seguiam em fila indiana em absoluto silêncio. Foi quando, de repente, sua mãe, Iris, escorregou e desapareceu em meio à escuridão. Ariella gritou. Um grito agudo rapidamente abafado pelas mãos de um desconhecido, que lhe tapou a boca. Ariella perdeu os sentidos e desmaiou. O grupo decidiu continuar o percurso.


Ariella Pardo Segre
Nesta entrevista à BBC News Brasil, a judia italiana naturalizada brasileira Ariella Pardo Segre conta como ela e sua família fugiram da perseguição nazista durante a Segunda Guerra Mundial | GUI CHRIST

"Era muito pequena. Mas essa lembrança nunca se apagou da minha memória. Me reanimaram e quando abri os olhos, vi uma porção de gente em volta de mim. Me disseram 'cala a boca, sua mãe está morta; se você gritar, morremos todos", conta por telefone Ariella, hoje com 78 anos, à BBC News Brasil. Naturalizada brasileira, ela é sobrevivente do Holocausto, como ficou conhecido o assassinato em massa de milhões de judeus, bem como cidadãos de etnia polonesa, soviéticos, homossexuais, ciganos e prisioneiros de guerra de várias nacionalidades, além de Testemunhas de Jeová e outras minorias, durante a Segunda Guerra Mundial, a partir de um programa de extermínio sistemático executado pelo Partido Nazista.

"Por muito tempo, tive muita dificuldade de falar sobre isso."

A travessia terminou com a família reunida. A mãe de Ariella fora encontrada viva e levada por outro grupo de refugiados até a fronteira com a Suíça. Naquele país, os Pardo estabeleceriam moradia até o fim da Segunda Guerra Mundial.

A fuga foi o estopim de um tormento que teve início anos antes, em 1938, quando as chamadas "leis raciais" foram promulgadas na Itália. O governo fascista, comandado por Benito Mussolini (1883-1945), instituiu um regime de segregação. Judeus eram considerados "perigosos", e muitos foram obrigados a viver sob restrito controle policial. Os pais de Ariella, ambos professores, perderam o emprego público.

Ainda assim, por mais difíceis que fossem as condições, a maioria não corria perigo de vida, pois Mussolini não acatou a exigência de Hitler de dar início às deportações.

Mas tudo mudou radicalmente em setembro de 1943, quando a Itália se rendeu aos Aliados. Mussolini é deposto pelo Grande Conselho Fascista por solicitação do rei Vitorio Emanuel III e detido. Tropas nazistas invadem, então, o país, dominando rapidamente grande parte do norte e do centro. O ex-líder italiano é resgatado da prisão em uma operação idealizada por Adolf Hitler (1889-1945). A região se torna uma república neo-fascista, com um governo fantoche de Mussolini. Na prática, eram os nazistas quem estavam no poder.

O pesadelo começava para os judeus que viviam nas zonas ocupadas pelos alemães, pois os nazistas, com a ajuda dos fascistas, começam a enclausurá-los e deportá-los. Dos 40 mil judeus que viviam na Itália, em 1943, 8 mil foram assassinados pelos nazistas.

Os Pardo viviam em Bolonha, no norte da Itália, o principal eixo ferroviário do país, de onde mais tarde partiriam trens rumo a campos de concentração e extermínio nazistas. Ainda que tivessem perdido o emprego e passado por privações, não temiam que fossem obrigados a deixar para trás tudo o que haviam construído. Mas um vizinho os alertou do que estava para acontecer.

"Um vizinho nosso, Alfredo Giommi, nos avisou sobre a chegada dos nazistas. Fugimos com a roupa do corpo e com dinheiro que tínhamos no bolso", conta Ariella.

Refugiados na Suíça

Após o percurso pelos Alpes, a família convenceu as autoridades suíças a permitir sua entrada. Chegou a um campo de refugiados e acabou dividida. As crianças foram separadas dos pais: Ariella passou a viver junto com outras meninas. O irmão dela, Lucio, em outro acampamento.

"Havia crianças de todas as nacionalidades, e eu não conseguia me comunicar com ninguém. Todas as vezes que minha mãe vinha me visitar, eu chorava. Era como se fosse muda. Só falava italiano e não entendia o que as outras meninas, em sua maioria francesas, falavam", diz.

Os pais dela, também separados, realizavam trabalhos braçais para sobreviver.

"Meu pai trabalhava como marceneiro, cortando lenha, e minha mãe, como cozinheira. Lembro-me do dia em que fui visitá-la e ela estava cortando batatas."

A vida dos Pardo no campo de refugiados durou até o fim da Guerra, em 1945, quando a Itália foi libertada e caminhões dos Aliados levaram os refugiados de volta a seus países de origem.

Ariella tinha cinco anos quando a família voltou à Bolonha. Mas o sufoco ainda não tinha terminado. A casa onde viviam estava ocupada por novos moradores.

"Chegamos à nossa casa e os novos moradores nos disseram que a tinham recebido do governo italiano. E que não éramos mais bem-vindos ali. Lembro-me de que a biblioteca do meu pai, um homem muito culto havia sido completamente destruída", diz.

A família foi, então, morar novamente em um campo de refugiados, montado em uma praça de Bolonha. Poucos dias depois, Giommi, o vizinho que os havia alertado sobre a chegada dos nazistas dois anos antes, os levou para viver em seu apartamento. Ali, eles passaram a morar em um quarto até conseguir voltar à sua antiga casa, por meio de uma ordem judicial.

"Para quem dormia no chão, dormir finalmente num quarto era uma maravilha. Ainda mais com um beijo da minha mãe", diz.

"Giommi foi um homem muito importante em nossas vidas. Não só nas nossas, mas na de muita gente", diz. Alfredo Giommi foi homenageado como 'Justo entre as Nações', um reconhecimento a todos os não judeus que durante a Segunda Guerra Mundial salvaram vidas de judeus perseguidos pelo regime nazista.

Mudança para o Brasil

Os pais de Ariella voltaram a dar aulas e a família retomou aos poucos a vida interrompida por causa da guerra.

Em 1958, de férias nos Alpes, ela conhece Marco Segre, um judeu italiano que havia fugido para o Brasil com os pais em 1938, quando as leis raciais foram instituídas, e que estava visitando parentes na Itália. Os dois se apaixonaram.

O casal mantém correspondência por dois anos até Segre regressar à Itália para se casar com Ariella. Os dois voltam juntos ao Brasil e se estabelecem em São Paulo, onde Ariella passa a dar aulas de italiano. Tiveram quatro filhos, oito netos e dois bisnetos. Marcos morreu há dois anos.

Aos 78 anos, Ariella está aposentada das salas de aula, mas continua a trabalhar em uma entidade judaica.

"Considero que tenho uma obrigação moral de continuar contando essa história para que o mundo nunca se esqueça dela", diz.

Celebrações

Neste domingo, dia 27 de janeiro, comemora-se o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, instituído pela ONU em 2005. A data marca a libertação do campo de concentração de Auschwitz, um dos maiores símbolos de tortura do nazismo, em 1945. Estima-se que mais de 1 milhão de pessoas, a maioria judeus, tenham morrido ali.

Por ocasião da data, a Federação Israelita do Estado de São Paulo (Fisesp) e a Congregação Israelita Paulista (CIP) promovem um ato solene na Sinagoga Etz Chaim da CIP, e, no Rio de Janeiro, a Confederação Israelita do Brasil e a Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro (Fierj) realizam uma solenidade no Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, no Aterro do Flamengo.

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