General brasileiro no Comando Sul dos EUA nega subordinação a Washington

Militar diz que interesse do Brasil é prioritário e descarta ação disfarçada na Venezuela


Por Igor Gielow | Folha de São Paulo

O primeiro general brasileiro a integrar o Comando Sul das Forças Armadas dos Estados Unidos, Alcides Valeriano de Faria Júnior, nega que sua indicação signifique algum tipo de subordinação de Brasília a Washington.


General de brigada Alcides Valeriano de Faria Júnior que irá para o Comando Sul dos EUA
General de brigada Alcides Valeriano de Faria Júnior que irá para o Comando Sul dos EUA

“Caso alguma decisão seja tomada [pelo Comando Sul], eu, como general, devo apresentar o ponto de vista militar brasileiro de maneira leal e responsável”, disse, em entrevista por escrito na semana passada e respondida nesta segunda (25).

“Caso a decisão soberana dos EUA não esteja de acordo com a posição política nacional, o Brasil pode determinar meu regresso e, eu como militar, funcionário de Estado, retorno imediatamente. Assim que receber a ordem.”

O general-de-brigada Alcides, conhecido pelo prenome no Exército, tem 52 anos e hoje comanda a 5ª Brigada de Cavalaria Blindada, de Ponta Grossa (PR).

Ele delineia o seu novo cargo, de subcomandante de Interoperabilidade: integrar esforços entre forças brasileiras e de outros países da região às dos EUA em caso de calamidades naturais ou crises humanitárias.

Isso foi lido por setores da esquerda, como o ex-chanceler Celso Amorim, como submissão à hipótese de intervir militarmente na crise venezuelana a partir de uma tentativa de ajuda humanitária. Esse, aliás, foi o roteiro apresentado pelo ditador Nicolás Maduro no fim de semana, quando bloqueou a entrada de caminhões com mantimentos do Brasil e da Colômbia, coordenados pelos EUA.

Alcides descarta a ideia. “Os EUA defendem suas posições estratégicas. Cabe a nós os nossos interesses”, disse.

O general de duas estrelas irá para os EUA em maio. Já havia oficiais superiores (coronéis, tenentes-coronéis e majores) brasileiros no Comando Sul, mas é a primeira vez que um oficial general do país participa de tal tipo de missão fora do guarda-chuva de organizações multilaterais como a ONU.

O Comando Sul cuida dos interesses americanos na região do Caribe e Américas Central e do Sul, e emprega 1.200 homens. É um dos dez do gênero no mundo. A indicação de Alcides havia sido adiantada ao Congresso americano pelo chefe da unidade, o almirante Craig Faller, no começo do mês. Isso também gerou críticas à esquerda.

Desde a implantação da Doutrina Monroe no século 19, passando pelo intervencionismo explícito de Theodore Roosevelt nos anos 1900 e a longa história de apoios a golpes na região, a relação entre forças americanas e suas vizinhas menores a sul sempre foi marcada por turbulências.

Quando o sr. assume a nova posição, e por quanto tempo? Já travou contato com o comandante de Interoperabilidade? 

Devo assumir a comissão em meados de maio. Meu contato será com o comandante do Army South (Exército Sul), general Mark Stammer, comandante do componente terrestre do Comando Sul (SouthCom), cujo comandante é o Almirante Faller. Uma conversa com meus comandantes está sendo programada para quando eu estiver mais próximo ao cumprimento da missão.

A partir de 2017, o Brasil passou a ter oficiais superiores de ligação no Comando Sul, para questões de coordenação entre Forças nacionais em hipóteses de ajuda humanitária ou desastres naturais. Sua ida é para a mesma função, agora com elevação de status, ou engloba outras áreas de atuação? 

O Brasil já possui, há bastante tempo, oficiais superiores no Exército Sul. Por intermédio desses oficiais são realizados os contatos e acertos, com o Exército americano, para todas as atividades de militares do Exército Brasileiro nos EUA (cursos, estágios, intercâmbios, etc.), tudo em estreita coordenação com o adido militar em Washington.

A presença de um oficial general coloca o Exército em um outro patamar de integração e deve ser visto como um reconhecimento internacional da capacidade e do preparo profissional dos militares brasileiros. O trabalho do general se refere ao desenvolvimento de sinergias e parcerias para, em caso de necessidade urgente ou de calamidades, prestar ajuda humanitária e alívio de desastres às populações atingidas por qualquer tragédia, como por exemplo, o terremoto que atingiu o Haiti em 2010.

Neste momento há a organização, coordenada com os EUA no Brasil e na Colômbia, dos corredores de ajuda humanitária à Venezuela. O almirante Faller disse que o Brasil fará parte este ano do SPMAFGTF (Special Purpose Marine Air-Ground Task Force). Isso tudo se correlaciona com a elevação do status da presença brasileira no Comando Sul, de alguma forma? 

O SPMAGTF é uma força-tarefa do componente dos Fuzileiros Navais no Comando Sul. Meu trabalho se dará no componente terrestre, ou seja, no Comando Sul. Acredito que essas ações refletem a modernização das Forças Armadas e o reconhecimento da profissionalização dos militares brasileiros, que se dedicam constantemente ao preparo para o cumprimento de suas missões constitucionais.

O presidente Trump já aventou a possibilidade de uma intervenção militar para derrubar o regime de Maduro. O Brasil rejeita a hipótese. Nesse sentido, como fica sua posição como representante do Brasil no comando militar que seria responsável por coordenar qualquer tipo de ação militar americana?

O meu trabalho está muito bem definido. O trabalho que os oficiais brasileiros desempenham estão inseridos no quadro de ações estabelecido pelas Diretrizes para as Atividades do Exército Brasileiro na Área Internacional, como, por exemplo, atividades de diplomacia militar e atuar como ligação entre o Brasil e o Comando Sul. Trabalhar como um assessor do comando.

Existe uma característica comum entre os militares de diferentes países. Compartilhamos valores comuns como patriotismo e lealdade. Temos juramentos que nos comprometem, como o de defender sua pátria. Isso é muito respeitado. É um código de honra.

Caso alguma decisão seja tomada [do Comando Sul], eu, como general, devo apresentar o ponto de vista militar brasileiro de maneira leal e responsável. Caso a decisão soberana dos EUA não esteja de acordo com a posição política nacional, o Brasil pode determinar meu regresso e, eu como militar, funcionário de Estado, retorno imediatamente. Assim que receber a ordem. Essa é uma característica da profissão militar. Disponibilidade total, de tempo e de movimentação.

Como o sr. vê a hipótese de uma crise humanitária tornar-se tão grave a ponto de ensejar uma ação militar direta, como ocorreu no Kosovo em 1999? Em que momento a linha entre resposta humanitária e ação proativa pode ou não ser ultrapassada? 

A situação em Kosovo era um pouco diferente. Acredito que os atores envolvidos na atual situação da Venezuela encontrarão uma saída para resolver esse impasse e evitar que a situação se agrave.

O Brasil nunca teve um oficial general em um comando que não fosse sob a organização de organismos multilaterais (missões da ONU, OEA em 1965). Isso pode ser visto como uma mudança de paradigma? 

Trata-se de uma tendência mundial participar de mecanismos multilaterais de cooperação. Essa é mais uma oportunidade que se abre para o nosso país. É o reconhecimento da capacidade e do profissionalismo dos militares brasileiros. Conquistada ao longo dos anos nas missões de paz, nos empregos na faixa de fronteira e nas Operações de Garantia da Lei e da Ordem.

Representa o reconhecimento de um trabalho de modernização pelo qual o Exército brasileiro vem passando. Um trabalho dedicado ao cumprimento de suas missões constitucionais. Além disso, sinto-me orgulhoso de poder ser o representante de tantos outros profissionais comprometidos com o Brasil.

Na sua fala de 7 de fevereiro ao Congresso americano, o almirante Faller nomeou China, Rússia, Irã, Nicarágua, Venezuela e Cuba como inimigas regionais de seu país. Participar do comando militar dos EUA para a região não pode ser visto como um alinhamento à doutrina americana? 

Não vejo dessa forma. O fato de termos representantes do Brasil em Forças Armadas de outros país não significa alinhamento automático. As decisões de política externa são tomadas pelos responsáveis no nível político e diplomático. Não é o caso da minha missão, que é executiva, ou seja, estarei envolvido em atividades operacionais e práticas, obviamente no meu nível hierárquico.

Além disso, conforme salientei antes, o Estado Brasileiro, ou o Exército, pode a qualquer momento, caso julgue necessário, determinar meu regresso ao país. E, como militar, estarei pronto para cumprir as decisões de meus comandantes no Brasil.

No Brasil, sempre houve uma resistência nacionalista entre políticos e mesmo militares em relação à aproximação com os EUA. Isso é algo anacrônico no século 21, e o modelo da cooperação EUA-Colômbia é algo a ser buscado? 

O Brasil adota em seus documentos de Defesa (“Livro Branco”, Estratégia e Política Nacionais de Defesa) o multilateralismo, ou seja, trabalhar com instituições e organizações mundiais, com diferentes atores e países, para solução dos problemas.

Os EUA, como país soberano, defendem suas posições estratégicas. Cabe a nós, buscar trabalhar em todos as esferas, organismos multilaterais, acordos bilaterais, ou quaisquer outros instrumentos, para defender nossos interesses.

Por isso, nós militares de diferentes nações nos respeitamos. Sabemos que, por juramento, vamos defender os interesses de nossos países, sem que isso implique falta de camaradagem e de fidalguia.

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