Regimes internacionais de controle de armas de destruição em massa: forma de implantação e efeitos no Brasil e na Argentina


Tadeu Lery*

Nos dias de hoje, as questões relacionadas com as armas de destruição em massa (ADM) ganham importância no contexto das Relações Internacionais.

A posse ou a capacitação tecnológica para o desenvolvimento desse tipo de armamento altera o posicionamento geopolítico das nações no cenário internacional, ainda que este seja composto majoritariamente por países comprometidos com os esforços pela paz.

As tensões existentes no período da Guerra Fria favoreceram a construção de uma rede de compromissos para a não-proliferação, que se concretizaram sob forma de tratados, convenções e regimes plurilaterais, de que são exemplos a Convenção sobre a Proibição das Armas Químicas (CWC), a Convenção sobre a Proibição das Armas Biológicas (BWC), o Regime de Controle de Tecnologias de Mísseis (MTCR), o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP) e o Grupo de Supridores Nucleares (NSG).

Por ser signatário dos principais acordos internacionais na área de não-proliferação de ADM, o Brasil obriga-se a controlar as exportações de bens, serviços e de tecnologias sensíveis, bem como as de bens de uso duplo (1).

Esses itens constam de listas de produtos controlados das áreas química, biológica, missilística e nuclear.

No cenário atual, marcado pela crescente preocupação com a ameaça do terrorismo internacional, assume grande importância a Resolução 1540 do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, adotada em abril de 2004, conhecida como UNSCR 1540.

Além de reforçar a obrigatoriedade do cumprimento dos regimes internacionais que o antecederam, esta resolução exorta os Estados a adotarem medidas para proibir, a atores não-estatais, a posse ou a transferência de bens, serviços, tecnologias ou outros meios que possam ser utilizados para o desenvolvimento, a produção ou o uso de ADM.

Os regimes internacionais de não-proliferação de ADM constituem-se em dos mais importantes instrumentos de que dispõe a comunidade internacional para atingir os objetivos do desarmamento e da paz mundial.

Sua implantação, entretanto, pode causar efeitos contrários aos interesses nacionais, ao afetar a balança de poder e ao introduzir óbices ao desenvolvimento científico e tecnológico.

Para Krasner (1982), “Os regimes são definidos como princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisão, implícitos ou explícitos, ao redor dos quais as expectativas dos atores convergem em uma dada área das relações internacionais. Os princípios são crenças sobre fatos, causalidades e retitude. As normas são padrões de comportamento definidos em termos de direitos e de obrigações. As regras são prescrições ou proscrições específicas para a ação. Os procedimentos de tomada de decisão são práticas para formular e implementar a ação coletiva”.

O Brasil apóia e participa de diversos regimes e mecanismos internacionais nas áreas do desarmamento e da não-proliferação de ADM.

A Constituição Federal de 1988 proíbe em seu Artigo 21 que a tecnologia nuclear seja utilizada para fins que não sejam pacíficos. O Brasil firmou com a Argentina, em agosto de 1991, o Acordo para o Uso Exclusivamente Pacífico da Energia Nuclear.

Ambos os países firmaram o Acordo Quadripartite, que entrou em vigor em 1994. Em maio de 1994 o Brasil firmou o Tratado de Tlatelolco, primeiro instrumento internacional a definir uma região habitada da Terra como zona desnuclearizada.

Em setembro de 1998, o Brasil aderiu ao TNP, que é peça central do regime internacional de não-proliferação de armas nucleares.

O Brasil foi um dos primeiros países a assinar e ratificar o Tratado de Banimento Geral de Testes Nucleares (CTBT), em 1998, e tem atuado nas discussões da Comissão Preparatória da futura Organização encarregada de acompanhar a implementação do Tratado, a OCTBT.

Os testes nucleares levados a cabo por Índia e Paquistão em maio e junho de 1998 foram condenados pelo Brasil.

Em 9 de junho de 1998, o Brasil associou-se a 7 outros países (México, Egito, África do Sul, Suécia, Nova Zelândia, Irlanda e Eslovênia) para emitir uma Declaração Ministerial que propôs uma série de medidas para o efetivo desarmamento nuclear global, nos termos do Artigo VI do TNP.

O Brasil é um dos membros originários da Organização para a Proibição das Armas Químicas (OPAQ) encarregada de acompanhar a implementação da Convenção de 1993 sobre a matéria (CPAQ).

Com relação à Convenção para a Proibição de Armas Biológicas, o Brasil é parte desde 1973 e tem participado dos esforços para o seu fortalecimento, que concentram-se em criar um sistema de verificação do cumprimento das obrigações assumidas pelos Estados-Partes.

Os compromissos brasileiros na área da não-proliferação de armas de destruição em massa foram estendidos em 1995 aos mísseis de longo alcance, com a adesão do País ao Regime de Controle de Tecnologias de Mísseis (MTCR).

Em abril de 1996 o Brasil aderiu ao Grupo de Supridores Nucleares (NSG).

Todas estas participações demonstram a preocupação brasileira com a maior inserção do país nos debates sobre o comércio de tecnologias sensíveis e nos fluxos internacionais de intercâmbio de tecnologias para fins pacíficos.

O cumprimento das prescrições da UNSCR 1540 é aferido por meio de relatórios anuais e notas adicionais. O documento mais importante produzido pelo Brasil até o momento data de 28 de outubro de 2004.

Nele o Brasil manifesta sua crença de que apenas a eliminação completa das ADM poderá assegurar que as mesmas nunca cairão nas mãos de atores não-estatais e declara que adotou “vigorosa legislação” tratando do tema.

Particulariza os instrumentos legais adotados, relacionando-os aos campos nuclear, químico, biológico, meios de lançamento e combate à lavagem de dinheiro. Afirma-se que o Brasil não possui e nunca desenvolveu ADM das modalidades nuclear, química e biológica.

O relatório cita as listas de controle de bens sensíveis em vigor no território nacional e menciona os órgãos governamentais encarregados de sua implementação; também detalha as medidas de proteção física, controles de fronteiras e regulamentos de transportes.

Em seguida, o relatório menciona os tratados, acordos e regimes internacionais de que o Brasil é parte, incluindo a convenção de Palermo contra o crime organizado transnacional, que tem efeitos positivos no combate ao terrorismo.

Menciona também as ações realizadas por instituições governamentais que mantém contato com os setores industriais que operam com bens sensíveis.

Finalmente, o texto detalha as ações realizadas pelo Brasil em cooperação com outros países, no âmbito de acordos multilaterais, para prevenir o tráfico ilícito de bens sensíveis.

Da mesma forma que o Brasil, a Argentina já apresentou ao comitê 1540 da ONU dois documentos que permitem aferir o cumprimento das prescrições da UNSCR 1540.

No relatório de 28 de outubro de 2004 a Argentina oferece seu apoio à decisão do Conselho de Segurança de combater as ameaças à paz e segurança internacionais representadas pela proliferação de ADM. Cita os principais regimes de que é parte: o TNP, a CWC e a BWC.

Relembra sua colaboração com a AIEA e a OPCW, além do seu apoio à criação de protocolos de verificação na área biológica. Os principais acordos regionais (Tlatelolco, Mendoza, Quadripartite) também são mencionados.

O texto destaca a participação da Argentina em cinco regimes de controle da exportação de bens sensíveis: o MTCR, que presidiu de 2003 a 2004, o NSG, o “Grupo da Austrália”, o Acordo de Wassenaar e o “Zangger Comitee”.

Menciona, entre as medidas destinadas a combater o terrorismo, a implementação da UNCSR 1373 (2001) e a participação no “Grupo 3+1” (Argentina, Brasil, Paraguai e Estados Unidos) que mantém vigilância sobre a região da Tríplice Fronteira. Menciona também a participação argentina em organizações multilaterais como o Inter-American Committee against Terrorism (CICTE), a International Civil Aviation Organization (ICAO) e a International Maritime Organization (IMO).

O segundo relatório é de 13 de dezembro de 2005. Nele, a Argentina afirma que continua a apoiar uma política de não proliferação, e que reforçou esse compromisso ao organizar dois seminários sobre a implantação da UNSCR 1540, com o apoio da Espanha e do Reino Unido, os quais contaram com a participação de diversos países da América Latina.

A Argentina lamenta que seu comprometimento não seja seguido por outros países, já que, na sua visão, não houve progresso significativo nas questões de desarmamento, particularmente no campo nuclear.

O relatório argentino cita a falta de conclusões concretas na sétima conferência de revisão do TNP e no “United Nations 2005 World Summit”, atribuindo o fato à existência de divergências inconciliáveis.

A Argentina declarou sua adesão aos princípios da Proliferation Security Initiative (PSI), relacionando essa decisão ao cumprimento do parágrafo 10 da UNSCR 1540. Informa que em 09 de maio de 2005 tornou-se o primeiro país sul-americano a firmar com os EUA o acordo Container Security Initiative (CSI).

O relatório também menciona diversos aperfeiçoamentos realizados na sua legislação e nos procedimentos de controle alfandegário.

Diversas entrevistas realizadas com cientistas e pesquisadores, no Brasil, permitem conhecer suas expectativas e necessidades, bem como sua percepção sobre os efeitos dos controles governamentais existentes na área de ADM e seus insumos.

De maneira geral, os pesquisadores queixam-se da burocracia existente, que segundo eles introduz óbices significativos para suas atividades.

Nas áreas química e nuclear, em que as formas de controle já estão consolidadas e são de amplo conhecimento das partes afetadas, a resistência é menor.

Na área biológica, entretanto, devido ao fato de a BWC não estar devidamente instrumentalizada com listas de bens sensíveis, os controles limitam-se aos processos alfandegários comuns, aos que se somam procedimentos de natureza sanitária.

Assim, a perspectiva de criação de novos controles é vista com desconfiança por parte dos pesquisadores, que temem o acréscimo de burocracia.

É inegável o progresso obtido pelos cientistas e pesquisadores brasileiros que atuam na área de bens sensíveis, bem como em outros setores de alta tecnologia.

As perspectivas de mercado para a tecnologia brasileira poderão, a médio prazo, despertar pressões e outras iniciativas por parte dos países desenvolvidos, que poderiam tentar limitar estas conquistas, temerosos da perda de competitividade dos seus próprios produtos.

Assim, os regimes internacionais de controle de ADM poderiam ser utilizados para reduzir o acesso do Brasil ao tipo de tecnologia que acarrete maior sucesso no mercado.

O termo “bens sensíveis” ganha outro significado; não por serem sensíveis no aspecto de Segurança Internacional, mas sim pela possibilidade de alterarem as posições relativas (market share) dos países no mercado internacional.

A comparação realizada sobre as posições do Brasil e da Argentina permite perceber que está consolidada uma ação conjunta, ao mesmo tempo em que existem diferenças significativas.

A posição brasileira caracteriza-se pela busca do fortalecimento dos tratados, acordos e regimes firmados em ambiente multilateral, principalmente na ONU e seus diversos órgãos coligados.

O Brasil evita aderir a regimes surgidos em grupos limitados, como é o caso do “Grupo da Austrália” que atua no setor biológico. Evita também o alinhamento incondicional com as posições e iniciativas das grandes potências (por exemplo, PSI e CSI).

Procura reforçar os regimes amplos, como o CWC, o BWC e o MTCR. Mas não se nega a participar de grupos de origem informal que estejam consolidados, como é o caso do NSG.

Como conseqüência da cautela em suas posições e do maior formalismo, os resultados obtidos pelo Brasil levam mais tempo para aparecer e ter efeitos concretos.

Já a Argentina, talvez como herança de posições anteriores, tem a tendência de aproximar-se mais facilmente das iniciativas das grandes potências.

A análise dos relatórios de ambos os países apresentados ao Comitê 1540 permite concluir que a Argentina tem apresentado maior atividade e resultados mais consistentes na prática.

Resta analisar, comparando as diferenças notadas, qual das duas políticas mostra-se mais eficaz. Se o objetivo principal é atuar em prol do desarmamento e da não proliferação, tendo vistas maiores na paz mundial, qual dos dois países obtém melhores resultados?

Pode-se concluir que ambos os países obtêm os melhores resultados possíveis, dentro do contexto das respectivas políticas externas.

A posição brasileira de fortalecimento dos regimes internacionais multilaterais parece ser mais coerente com as linhas mestras da política externa, que busca a inserção internacional com base nas instituições e na confiança.

Já a política exercida pela Argentina também mostra coerência com as posições recentes de sua diplomacia, além de ter a vantagem de demonstrar maior produtividade nas ações realizadas.

NOTA

1 - Segundo a lei n 9.112, de 10 de outubro de 1995, Art. 1º:

“ § 1º - Consideram-se bens sensíveis os bens de aplicação bélica, os bens de uso duplo e os bens de uso na área nuclear, química e biológica;
I - consideram-se bens de aplicação bélica os que a legislação defina como de uso privativo das Forças Armadas ou que sejam de utilização característica dessas instituições, incluídos seus componentes, sobressalentes, acessórios e suprimentos;
II - consideram-se bens de uso duplo os de aplicação generalizada, desde que relevantes para aplicação bélica; [...]”.

*Tadeu Lery é engenheiro e pesquisador espcializado em assuntos de Defesa.

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