Memória esquecida



O limbo em que vivem os soldados brasileiros que morreram combatendo na Itália na Segunda Guerra Mundial e os veteranos que ainda estão vivos é uma mostra acabada de como nós tratamos a nossa história real e a memória nacional. Eles vivem em completo e vergonhoso esquecimento, a não ser pelo trabalho das associações de veteranos, a Associação Nacional dos Veteranos da Força Expedicionária Brasileira e suas seções estaduais. Como a maioria não era de soldados profissionais, mas recrutada entre os civis, os que não eram oficiais também não recebem muita atenção do governo. A representação local da associação funciona precariamente e não tem dinheiro sequer para pagar os aluguéis e manter o acervo histórico de fotografias, documentos e peças memoriais.

Os carinhosamente chamados de pracinhas cumpriram seu dever na expulsão do invasor nazista da Itália, lutando bravamente apesar do pouco preparo recebido. Consta que seus chefes também não entendiam do tipo de guerra travado então na Europa e que, devido a isso, teria morrido mais gente do que era previsível. Foram 457 homens mortos em combate e mais de 2 mil feridos numa tropa de 25 mil brasileiros. Sepultados em cemitério militar em Pistoia, na Toscana, seus restos mortais foram depois trazidos para o monumento erguido no Rio em memória de todos os aliados mortos.

Misteriosamente, a FEB não teve permissão para continuar a luta antinazista, na Áustria e na Alemanha, até a rendição incondicional. Embora a cúpula militar do Estado Novo tivesse abertas simpatias pelos nazistas, teve de concordar com a decisão de Getúlio Vargas de entrar em guerra contra a Alemanha. O então ditador entendeu-se com o presidente Franklin Roosevelt, dos EUA, com o olho em financiamento americano para a Companhia Siderúrgica Nacional e outros projetos de desenvolvimento. Convertidos à democracia americana, os generais derrubaram Getúlio (que já havia marcado eleições para 1945), frustrando assim o seu projeto nacional de país com desenvolvimento autônomo. De regresso à pátria, os pracinhas foram abandonados à própria sorte. O que recebem do Estado não dá para sobreviverem com dignidade.

Recente trabalho de nossa repórter Ciara Carvalho traz uma entrevista com o major Alberto Leite Pessoa, 88 anos, que preside a seção local da Associação Nacional dos Veteranos e falou sobre as dificuldades que os associados enfrentam e a falta de apoio para a preservação de importante acervo. Ele não condena a cúpula das forças armadas, diz que os veteranos têm o apoio dela. Mas se queixa da burocracia governamental e diz que seus colegas têm sido prejudicados pelo Poder Judiciário. Quem lutou na guerra tem direito a uma pensão especial. Mas nem todos a recebem, devido a interpretações de alguns magistrados, como explicam os prejudicados.

Uns poucos historiadores, como Alexandre Campello e Luís Vítor Alikin, estão empreendendo um trabalho de recuperação e manutenção de fotos, documentos, peças trazidas dos campos de batalha, mas não contam com verbas e outros tipos de apoio de entidades governamentais. Será que esse rico material está condenado à destruição? A memória humana dos pracinhas também vai se reduzindo (a maioria tem mais de 80 anos). O Ministério da Cultura tem obrigação de velar por esse acervo. Gasta-se muito dinheiro público com promoções e projetos inúteis do ponto de vista da memória e da cultura do nosso País. A criação de um museu, com os incentivos da Lei Rouanet, é a proposta dos historiadores que travam voluntariamente essa nova batalha da FEB. Uma lei como a que existe em São Paulo, que destina uma pequena parte do recolhido pelo IPVA à associação local dos veteranos, poderia resolver parte dos problemas dos veteranos de guerra pernambucanos.

Finalizamos com palavras do major Pessoa. Ele está pessimista: “Este País tem pouca memória. Estraguei minha mocidade em defesa de um Brasil melhor, e hoje o que eu vejo é um País perdido, corroído pela corrupção. E os esforços que fizemos no campo de batalha? E os nossos mortos que enterramos? Parece que tudo isso foi esquecido”.

Postar um comentário

Please Select Embedded Mode To Show The Comment System.*

Postagem Anterior Próxima Postagem