"Rússia já suportou provocações"

O novo xadrez eleva a capacidade de ação da Rússia em todos os assuntos internacionais


Não é um filme de faroeste, nem tem mocinhos e bandidos. Trata-se de complexa questão internacional, onde os atores de sempre apresentam-se com argumentos velhos e novos, provocando releituras obrigatórias do sistema internacional de poder. É o que explica o professor Flávio Saraiva, especialista em relações internacionais da Universidade de Brasília, sobre o recente conflito entre georgianos e russos, com a participação também dos Estados Unidos e da Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN.

Os Estados Unidos e a imprensa norte-americana costumam reduzir tudo a um filme de faroeste, com mocinho e bandido. O mocinho são eles, claro, agora com um auxiliar de mocinho, que é a Geórgia. A Rússia é o bandido. O que o senhor pensa disso?

Penso que é um equívoco expor os temas da Eurásia ao esquema antigo da Guerra Fria. Não há mocinhos nem bandidos. Há uma disputa geoestratégica, geopolítica, que se moveu de forma muito clara para as fronteiras dos Urais, no Cáucaso. E há o papel da Rússia, importante, quando se dizia que ela tinha encerrado seu papel no cenário internacional. A Rússia elevou seu status econômico, uma economia vibrante, tem um regime político de grande capacidade de gerir as forças internas em torno de um projeto internacional, que é a retomada de sua capacidade de agir no mundo. E ainda tem o fator energético, que é uma arma explícita nas negociações mundiais contemporâneas. Quer dizer: aqueles que haviam sepultado – não é o meu caso – a Rússia, reduzindo-a a um poder menor, assistem a um renascimento econômico, com um PIB que ao final deste ano alcançará o da tríade Itália, França e Inglaterra, saindo do 12º lugar para entrar entre as cinco ou seis primeiras economias do mundo. A Rússia tem fatores de poder estocados.

Então, o que houve?

Houve um mau trato do ponto de vista da literatura das relações internacionais, uma visão muito pouco adequada à história e ao futuro da Rússia. Há uma disputa, que não é a velha guerra fria, mas é um fato que o novo xadrez da região eleva a capacidade de ação da Rússia em todos os assuntos internacionais, da China às fronteiras dos Pirineus. Ela ampliou seu raio de ação graças a sua estabilidade política, ao crescimento econômico e à permanência dos fatores estratégicos clássicos: as armas que possui e a energia estratégica para o desenvolvimento da Europa.

E o que motiva a Geórgia a fazer essa bravata?

Primeiro um nacionalismo fora de moda. A transformação de um líder político liberal, criado pelas escolas ocidentais de política internacional – estudou nos Estados Unidos e na Inglaterra - a serviço de um nacionalismo clássico. Essa realpolitik ocidental criou um líder despreparado para função, sem saber mover-se num xadrez que, certamente, não foi criado apenas por suas intenções. Há uma fronteira que não é da guerra fria clássica, mas muito mais antiga, da Europa com a Ásia. Dos Urais aos Bálcãs tem-se a noção de que são estados politicamente insatisfeitos. A Polônia aparece e desaparece no mapa, a Romênia guarda um rancor secular contra os russos, quase todos os países têm problemas, portanto é um espaço de disputas, não da forma da guerra fria antiga, a bipolaridade, mas outra, nova, da multipolaridade explícita: a China pesa, a Índia pesa, a América Latina pesa, deixando de ser quintal. Uma nova geografia, complexa, com evidentes candidatos à ocupação desses espaços. Estão nesse jogo, agora, não só os EUA e URSS-Rússia, mas outros jogadores, como a Alemanha e sua segurança energética. Além da segurança de toda a União Européia.

Tem razões claras a Rússia para reagir como reagiu?

Acho que tem razões claras e a agiu como deveria agir. Porque é uma área natural de presença e observação do estado pivô, chamado Rússia. É como se houve uma invasão ou movimentos inaceitáveis, por exemplo, nas franjas do Brasil. É claro que é adocicada a idéia de uma regulação internacional pela lei internacional, pelo regimes internacionais de paz, segurança, equilíbrio ecológico, etc. Mas o mundo em que vivemos é crescentemente um mundo de estados com franjas. E ali, são franjas importantes de um estado que não abdicou de exercer a sua hegemonia. Então, não causa surpresa a reação da Rússia. Apenas um neófito em temas das relações internacionais poderia imaginar que a Rússia assistiria aos fatos com eqüidistância e negociaria com os EUA numa situação especial.

Evidente que não. Muitas vezes tiveram os russos paciência diante de provocações dos EUA nos últimos três anos. Os mísseis, a instalação das bases na Europa, além das provocações das rádios instaladas no antigo leste europeu de influência soviética. Provocações a Moscou de paises cujos regimes estão longe de serem exemplos de democracia à moda americana. A Rússia, agora, como estado com capacidade estratégica, reage. E tem meios para reagir.

Nesse cenário, nesse tabuleiro de xadrez a OTAN entra com que papel?

São retóricas esperadas da OTAN, de um sistema de defesa atlantista, que tem limites operacionais visíveis. Mas o fórum para o encaminhamento das negociações será muito menos a OTAN e muito mais o Conselho de Segurança das Nações Unidas, que é um lugar bastante menor para o diálogo, mas onde EUA, Rússia e China terão condições de conversar diretamente, sem um grande elenco de países que apenas compõem a fila de apoio natural às posições americanas. Nessa matéria a OTAN tem capacidade moderada e limitada de agir. Agora são poucos os países que, ao final do dia, pensarão em atos contra os russos.

O CS da ONU seria hoje um dos poucos locais onde os EUA se comportam como gente grande, falam e ouvem?

Sim, e daí a resistência enorme a uma reforma desse sistema. Se como está, mesmo obsoleto, já é adverso, imagine-se ampliado, por representações fortes da Ásia, da América Latina e até da África.

Há uma geografia nova, múltipla, de estados que não desapareceram diante da grande centralidade dos movimentos internacionais contemporâneas e que são hoje estados que realizam seus interesses internacionais pela via da obstrução, da negação ou da afirmação dos seus interesses soberanos. Não há um estado de natureza, mas também não há a regulação universalista liberal desenhada pelo estrategista de Washington. Perdeu-se a capacidade de agir em Washington e os outros não têm capacidade de substituir Washington. O que temos é um sistema internacional de transição, com a formação de multipolaridades: a Rússia, que não seria mais nada, na visão de muitos, habilita-se, como polaridade e como centro de negociação da China com os países da EU e países da Europa Oriental.

Este é um ponto fascinante: a guerra fria era uma bipolaridade ideológica, que acabou. Todos os grandes países aderiram ao capitalismo. É a dialética dentro do capitalismo, jogando a contradição para dentro do capitalismo. O que senhor pensa disso?

Sem dúvida. Diria, inclusive, que o xadrez agora está mais para a Guerra do Peloponeso e a grande obra de Tucídides, da realização dos interesses de cada cidade-estado, ou de cada estado atual. Questões de ordem geopolítica, nacionais, por sobre o quadro ideológico. Questões econômicas que projetam o interesse não só dos estados, como de suas grandes empresas. O melhor exemplo é a Gazprom, quase um estado complementar ao grande estado russo. É a segurança de que não vão construir armadilhas na relação entre a Europa Ocidental e a Rússia. Uma eventual construção de uma rede de bases americanas na Europa, contra a Rússia, é atentatória à própria sobrevivência energética dessa mesma Europa. Pensou-se que tido isso tinha acabado com a globalização dos anos 80. Mas não estamos assistindo ao surgimento de um novo mapa, baseado nos interesses mundiais dos estados. O estado nacional está de volta, mas com interesses multipolares.

Nesse quadro, com fica o papel de policial, de gendarme mundial que Bush tanto desenhou para os EUA?

Esse papel foi inventado sem que os EUA tivessem, na posse de Bush, capacidade para interferir na construção dessa gendarmerie internacional. Há elementos visíveis do declínio americano na macroeconomia política. E também na capacidade de intervir em situações internacionais estratégicas. O fiasco da guerra do Iraque foi, talvez, o fato emblemático de tudo isso. E a provocação ao governo russo, transportando tropas georgianas no Iraque, em aviões americanos, para as fronteiras georgianas e a preparação destas para a ação que culminou com a reação russa, é prova evidente de que essa capacidade de agir está diminuída, porque não enfrentam os russos diretamente. Não precisa ser grande mestre em inteligência para saber que foram aviões americanos que transportaram as tropas georgianas. A Geórgia nem tem essa capacidade de transporte.

E o futuro, a curto prazo, na região e no mundo?

Creio que na região não se atuará mais de forma açodada. O futuro dos grandes estados é o governo global. Pensava-se que seria um capitalismo internacional sem fronteiras. Ao contrário: cada vez mais os estados têm capacidade de acumulação científico-tecnológica de ponta, economia de escala, estoques estratégicos e população. O futuro é o arranjo dessas grandes áreas na terra.

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