Plano de Defesa de Lula não eliminará problemas do setor

Apesar das muitas discussões entre ministros e o Alto Comando, a compra de material bélico continua sendo feita sem coerência

Mangabeira Unger anuncia parceria com os russos para construir um caça, enquanto o Ministério da Defesa quer um acordo com os franceses



IGOR GIELOW
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

ALAN GRIPP
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva irá anunciar nesta semana o Plano Estratégico de Defesa Nacional para os próximos 30 anos. Mas há dois problemas, práticos e conceituais.

Primeiro, o plano será uma carta de intenções dependente do cumprimento da promessa de mais dinheiro para o setor. Segundo, a compra de material bélico vem sendo alinhavada sem coordenação e com diversos pontos de interrogação.

Hoje o plano é um documento de pouco mais de cem páginas, resultado de um ano de visitas a potências militares e intermináveis reuniões entre os ministros Nelson Jobim (Defesa), Mangabeira Unger (Assuntos Estratégicos) e o Alto Comando das Forças Armadas.

Por ora, o texto planeja o reaparelhamento das Forças, a organização da indústria bélica nacional, o reforço do patrulhamento da fronteira e alterações no serviço militar obrigatório. Mas sua redação não é final.

Exemplo: Mangabeira defende um serviço civil obrigatório a ser exigido de todos os reservistas. Eles fariam serviços comunitários e passariam por um tratamento militar rudimentar, para servirem como força de reserva. O próprio ministro tem poucas esperanças de emplacar a idéia: "É audacioso, eu sei. Mas a transformação de um país exige sacrifício". Conforme relataram sob sigilo dois oficiais superiores que participaram das discussões, o plano pode virar, nas palavras deles mesmos, um amontoado de idéias ora "amalucadas", ora "realistas", ora "inexeqüíveis".

O plano não trata especificamente das negociações de material bélico. E aí residem incoerências. O caso da Marinha é eloqüente: há 26 anos o Brasil tem um acordo com estaleiros alemães para fabricar o consagrado submarino Tipo-209, mas, por conta da parceria estratégica com a França, o trabalho será paralisado e recomeçado com o Scorpène, produto não exatamente aceito no mercado.

Na Aeronáutica, o caso mais famoso de ida-e-vinda é o da compra dos caças supersônicos: após muita protelação, o governo Lula comprou 12 Mirage-2000 da França para "tapar buraco", mas a idéia em debate é ambiciosa: compra inicial de até 36 aparelhos, chegando a mais de 100 até 2020, para substituir os Mirage, os AMX de ataque e os F-5BR táticos. Os concorrentes fortes são os mesmos da licitação F-X, em 2002: França e Rússia.

Os franceses, com o seu Rafale, parecem hoje mais bem posicionados devido à tal "parceria estratégica". Do ponto de vista puramente militar, o russo Sukhoi-35 é considerado superior, e Moscou promete total transferência tecnológica.

Mas aí entra a confusão. Mangabeira chegou a anunciar uma "parceria estratégica" com os russos para construir em conjunto um caça de próxima geração, mas a Defesa confirma o acordo com os franceses. Além de altamente improvável devido à falta de tradição de cooperação russo-brasileira, a idéia de Mangabeira choca-se com a preferência de Jobim: qual o sentido de comprar de um fornecedor e depois buscar o produto futuro de outro?

Mesma confusão já ocorre na área de helicópteros. O governo, com a ajuda do lobby do governador Aécio Neves (PSDB-MG), aceitou comprar 50 unidades do Cougar, helicóptero francês sobre o qual pesam boatos de descontinuação da linha européia. Aécio entrou na jogada porque a Helibrás, que pertence à francesa Eurocopter, tem fábrica em Itajubá.

Enquanto isso, chega ao Brasil amanhã uma missão russa para fechar a venda de 12 helicópteros de ataque russos Mi-35, negócio em torno de US$ 250 milhões. O produto é dos melhores de sua categoria, mas cabe perguntar o motivo da escolha de duas matrizes diferentes de fornecedor de produtos semelhantes: são duas escolas de manutenção e treinamento completamente diferentes.

O plano não dá detalhes, mas preverá o estabelecimento de favores para a indústria bélica nacional, que já foi uma das "top 10" do mundo nos anos 80. Há relatos incipientes de fábricas de veículos blindados em Minas e no Rio Grande do Sul, mas quem deverá se beneficiar é a poderosa Embraer: a FAB conseguiu emplacar uma rubrica no Orçamento de 2009 para dar dinheiro ao desenvolvimento de um avião de carga a jato para substituir os Hércules C-130. Um bom negócio para a Embraer: se o projeto não decolar, não terá gasto nada nele.

Além disso, há o ceticismo decorrente da realidade orçamentária do país. Mesmo com um orçamento gigante, de R$ 41 bilhões neste ano, a Defesa só conseguiu gastar R$ 394 milhões em investimento direto.

Mas há mais dinheiro prometido: a verba para investimento e custeio saltou de R$ 7,4 bilhões neste ano para R$ 10,9 bilhões em 2009.

Outro fator importante: o Chile e a Venezuela se armaram muito nos últimos anos. O fato foi lembrado em Anápolis pelo comandante da Aeronáutica, Juniti Saito: "Eles [Chile e Venezuela] fizeram a parte deles. É importante que façamos a nossa. Nossos diplomatas são muito capazes, mas ninguém sabe o dia de amanhã".

Lobistas agem abertamente entre oficiais

As discussões são todas "de alto nível", com oficiais estrelados e ministros, mas na hora de fechar um negócio militar quem invariavelmente aparece é o lobista.

Alguns agem abertamente. Na quarta passada, enquanto o ministro Nelson Jobim (Defesa) recebia na Base Aérea de Anápolis (GO) os dois últimos caças Mirage-2000 comprados da França em 2006, dois franceses chamavam a atenção pela desenvoltura com que circulavam entre os chefes da FAB: eram representantes da gigante francesa Dassault. Oficialmente, estavam ali para a entrega do Mirage, mas aproveitaram cada minuto para alardear as vantagens do Rafale, forte candidato a virar o novo caça padrão do Brasil.

Aos oficiais da FAB e à Folha, François Haas e Jean-Marc Merialdo revelaram os argumentos que levaram ao Estado-Maior da Aeronáutica, em agosto, para manter a parceria com a França: a garantia do governo francês de transferir ao Brasil a tecnologia do Rafale. "No mundo atual, isso não é fácil. A Boeing pode prometer o que quiser, mas se o governo americano não concordar em transferir tecnologia, não há o que fazer", disse Haas.

Jean-Marc citou o bom desempenho dos Rafale no Afeganistão -"os pilotos elogiaram muito"-, mas o fato é que a Dassault está com problemas para vender o Rafale fora da França. Ele perdeu até aqui todas as concorrências que disputou, geralmente por conta do preço alto, entre 50 e 60 milhões. Em Anápolis, Jobim foi apresentado ao novo adido militar da França no Brasil, Jean-Marie Charpentier, que endossou o compromisso de transferir tecnologia: "O presidente Nicolas Sarkozy está à disposição do Brasil".

Enquanto isso, amanhã chega ao país uma comitiva de russos e paquistaneses visando fechar a venda de helicópteros Mi-35 à FAB – 12 unidades a US$ 20 milhões cada. A presença de paquistaneses decorre do fato de que é uma empresa daquele país uma das maiores lobistas pela venda de armas russas.

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