Nossa fronteira mais vulnerável

Como é a vida dos soldados que monitoram 11.500 quilômetros na Floresta Amazônica



Matheus Leitão
, de Manaus

Aru é um fenômeno natural comum da selva amazônica – e aparentemente inofensivo. Presente durante todo o ano, mais intenso na estação da cheia, ele é causado pela alta umidade e gera neblina na copa das árvores. É aquela cerração que, vista de cima, parece uma camada de algodão sobre a floresta. Em junho passado, essa fina névoa ensinou uma vez mais que, na selva, nada deve ser menosprezado. Um helicóptero Pantera, do Exército, tentou furar o Aru que se formara no fim de uma tempestade sobre um afluente do Rio Amazonas. Ele se desorientou e desabou na água. O piloto, capitão Marco Aurélio da Silva Martins, morreu na hora. Outros quatro tripulantes sobreviveram.

Não é fácil a vida de militar na Amazônia, onde eles estão cada vez mais presentes. Há profissionais de todas as regiões do país – também índios amazônicos. O capitão Daniel Rosar Fornazari, de 34 anos, curitibano, foi transferido há dois anos para Manaus. Casado com Taís, de 29, ele é pai de dois filhos, Pedro, de 6, e Beatriz, de 3. Fornazari faz parte de um movimento gradual, organizado pelas Forças Armadas, que leva para lá batalhões e serviços outrora destinados a proteger outras áreas. Eles chegam com a missão de tomar conta de um pedaço cada vez mais importante do solo brasileiro. Em 1950, havia apenas mil homens para controlar a fronteira amazônica. Hoje, são 25 mil. Ao todo, cinco brigadas já foram transferidas das regiões Sul e Sudeste, como a de Niterói (Rio de Janeiro), removida para São Gabriel da Cachoeira (Amazonas), e a de Santo Ângelo (Rio Grande do Sul), que foi para Tefé (Amazonas).

Fornazari, especialista em confecção e análise de mapas, é o militar típico da geração atual. Saiu da terra natal para se formar em Santana do Livramento (Rio Grande do Sul). Ali, casou-se. Voltou ao Paraná e serviu em Castro por três anos, quando chegou o primeiro filho. Foi novamente para o Rio Grande, em Jaguarão, onde nasceu a caçula. Três anos se passaram e nova mudança: desta vez para Manaus, onde a família inteira sentiu o choque da temperatura. “Foi horrível. A adaptação ao calor foi complicada, meus filhos tiveram alergias fortes. Agora, soubemos que vamos mudar de novo”, diz Taís, o rosto coberto de suor, numa vila militar distante uns 15 quilômetros do Comando Militar da Amazônia (CMA), quartel-general central de defesa da Amazônia, em Manaus.

As casas simples, em terrenos de 700 metros quadrados, idênticas, todas brancas, dão a impressão de uma cidade cenográfica. O capitão Fornazari e a família partem, em janeiro, rumo a Brasília. “A gente se acostuma com essa vida de nômade”, afirma ele. Taís interrompe para dizer que só não se acostuma com os preços altos dos hortifrutigranjeiros em Manaus: “O que custa 50 centavos no sul, aqui é R$ 5, como a alface. Ou a caixa de morangos, de R$ 3 para R$ 10. Tudo vem de avião”.

Naquela imensidão territorial, com pelo menos 3,5 milhões de quilômetros quadrados, o trabalho de Fornazari é fundamental. Ele faz mapas, detalhados, precisos. No ano passado, dedicou-se a desenhar mapas das unidades de conservação (UCs), para que o Exército possa conhecê-las melhor e, assim, protegê-las. As UCs são locais a preservar, guardados para o futuro do país. O presente é o calor, a rotina dura e a sensação de que a feira tem preços que exorbitam.

Nesse capítulo, Taís não está sozinha na luta da calculadora pela salada de cada dia. O tenente Viviene Cristina Walz de Freitas, de 27 anos, também é oficial do Exército. Formada em Direito, entrou para a vida militar por concurso há poucos anos e também faz parte da modernização do efetivo. Aprovada no Paraná, veio para Manaus em 2006. É assessora jurídica do CMA. “Aqui, a alimentação é cara, mas todos os militares do país deveriam passar por aqui para ter a noção da importância da Amazônia”, diz ela. Fornazari ou Viviene teriam de investir R$ 1.800 se quisessem visitar os familiares no Sul – algo que raramente fazem.

A realidade material é áspera e, no caso do helicóptero Pantera que matou o capitão Marco Aurélio, resvala para a tragédia. O Pantera foi muito usado pelos americanos no Vietnã. Arma desenhada meio século atrás, lembra um mundo com muros que não existem mais. Tecnologicamente ultrapassado, faz parte de um lote comprado na metade da década de 80. Agora, com o acidente, somente 11 deles estão ativos numa faixa de fronteira terrestre de 11.500 quilômetros, mais de quatro vezes a extensão da fronteira dos Estados Unidos com o México, violada diariamente por migrantes ilegais, drogas e toda espécie de trânsito indesejado. Com seus 40 anos de uso cotidiano, são também numericamente insuficientes para o desafio. “É muito pouco. O ideal seria, pelo menos, dobrar a frota”, afirma o general Augusto Heleno, comandante militar da Amazônia.

Heleno é um comandante popular. A tropa o seguiu no Haiti e o acompanha na Amazônia não apenas pela inescapável disciplina, mas também pelo jeito dele. Do comando em Manaus, responde pela proteção de uma das fronteiras mais complexas do planeta. Do lado brasileiro, seis Estados que correspondem a 42% do território nacional. Do lado de lá, sete países, cada um com seus “contenciosos latentes”, para usar um termo militar do próprio general.

Há velhos e novos perigos. O mais novo e preocupante: o crime. Narcotráfico, contrabando, garimpo ilegal, extração de madeira, tráfico de animais silvestres, biopirataria, tudo isso se protege na imensidão da floresta. Há também reivindicações de etnias indígenas. Há até as Farc, que, mesmo enfraquecidas, requerem atenção. O terreno é do tipo aquático, com pelo menos 22.000 quilômetros de vias navegáveis, transformadas na principal porta de entrada de drogas manejadas por competentes narcotraficantes. Enquanto isso, as tropas montam guarda com os mesmos fuzis automáticos leves desenhados por engenheiros belgas em 1964, depois fabricados no país. São os outrora badalados FAL, agora quarentões, que constituem o instrumento de trabalho nos 22 pelotões de fronteira – cada um com 60 “guerreiros”. Essa é a ponta de lança, incrustada no meio da selva, do dispositivo responsável pela defesa da Amazônia.

Os pelotões estão amparados na segunda linha por unidades com 3.500 integrantes. Os caminhões e jipes, Mercedes e Ford principalmente, têm mais de 20 anos. Lanchas, hoje essenciais para a fiscalização, se arrastam tocadas por motores de 70 cavalos, com a tarefa de perseguir voadeiras de criminosos, que nunca aceitam coisa menor que engenhocas Mercury com 200 cavalos. Alguns rádios de comunicação não funcionam. Sem internet via parabólica, os pelotões ficam isolados. A Aeronáutica tem o Plano de Apoio à Amazônia. São seus integrantes que levam comida, combustível para os geradores e trocam a guarda.

Todos os pelotões de fronteira foram construídos com um pavilhão extra, para abrigar funcionários da Polícia Federal, do Ibama e da Receita Federal, que deveriam trabalhar em conjunto com o Exército. Uma idéia simples, praticada no Brasil: integrar as várias agências do Estado. O problema é que esses pavilhões destinados às agências civis ficam às moscas. O abandono impõe ao Exército outra missão para a qual não foi preparado. “Nenhum desses espaços está ocupado em toda a defesa amazônica”, afirma o general Heleno. “Nunca vi cocaína. Não sei diferenciar a droga da farinha ou do açúcar. Quem foi treinado para isso, os órgãos competentes, não tem efetivos para mandar para a selva.” A Receita poderia ajudar a controlar a fuga de guerrilheiros colombianos para o Brasil, muitas vezes com documentos falsos.

O que dá orgulho a quem serve na floresta é o soldado, que Heleno elogia sem pestanejar. Boa parte dos cabos e soldados engajados na Amazônia são índios, naturalmente adaptados para agir na selva. Desde o fim da década de 90, o búfalo é usado por eles como meio eficaz de transporte de suprimento. Fortes e dóceis, esses animais carregam 500 quilos, algo como quatro metralhadoras MAG 762 e comida para 20 homens. Percorrem até 15 quilômetros por dia, comendo o que encontram pela frente com gosto de clorofila. O soldado Anderson Correia de Almeida é um dos mais experientes e treina recrutas para lidar com o animal no Centro de Instrução de Guerra na Selva, o Cigs.

A hierarquia dos pelotões de fronteira é formada, na maioria, por oficiais e sargentos treinados no Cigs. O curso massacra. São 11 semanas sem descanso, nove delas dentro da floresta, que já formaram 4.500 militares brasileiros – além de outros 380 estrangeiros. Dez morreram durante o curso, que existe desde 1966. Na média, cada militar que entra para o Cigs e consegue fazer a carga horária completa sai oito quilos mais magro. O capitão Fornazari fez um estágio nesse curso. Por ter gente assim sob seu comando, o general Heleno garante que a prioridade do momento não é aumentar a tropa. Ele quer, em primeiro lugar, melhorar a infra-estrutura.

Há duas semanas, apresentou a dois visitantes ilustres, na sala de reuniões do Q.G., um estudo sobre o “Papel do Exército Brasileiro na Defesa da Amazônia”. Quem assistia à apresentação eram os atores Victor Fasano e Christiane Torloni, patrocinadores do site “Amazônia para sempre”. Uma das telas exibe a pergunta crucial: “Por que insistimos no reaparelhamento e modernização da Amazônia?”. E dá a resposta: “Porque é a possibilidade mais provável de emprego das Forças Armadas brasileiras no mundo de hoje”. Essa nova mentalidade militar brasileira é a essência do plano estratégico de defesa do país, que será apresentado dentro de algumas semanas. Na próxima reportagem, o ministro de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, adianta qual deverá ser o novo papel das Forças Armadas.

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