Operação desembarque

A despeito do aumento da violência no Iraque, os Estados Unidos seguem à risca o cronograma de retirada das forças de segurança do país. Em setembro, a tropa será reduzida para 50 mil militares

Isabel Fleck - Correio Braziliense

A entrega simbólica de uma chave de quase um metro de comprimento marcou o mais recente passo do governo americano em direção à retirada de suas tropas do Iraque. Com ela, os Estados Unidos transferiram para o governo iraquiano o controle da última prisão que estava sob sua responsabilidade no país, e mostraram ao mundo que têm conseguido cumprir o tão questionado cronograma assumido pelo presidente Barack Obama. No próximo mês, as forças americanas, contudo, enfrentarão o maior desafio do plano de retirada iniciado no último ano: a redução das tropas em mais de um terço, chegando aos 50 mil militares que ficarão até o fim da operação, em dezembro de 2011.

Desde que o plano de retirada foi anunciado por Obama, em março de 2009, as tropas americanas entregaram para as forças de segurança do Iraque o controle das principais cidades do país e da Zona Verde de Bagdá, e passaram a responder ao comando iraquiano, no início deste ano. O efetivo dos Estados Unidos foi reduzido quase à metade — de 142 mil para 77 mil —, e as tropas de outros países deixaram completamente o território iraquiano. Nesse período, foram fechadas duas grandes prisões iraquianas — o Camp Bucca, perto da cidade de Basra (sul), e o Camp Taji, ao norte de Bagdá. O Camp Cropper, que fica próximo ao aeroporto da capital, foi repassado na última quinta-feira ao controle das forças nacionais.

"Este é o primeiro dia de uma nova era. Agora todos os elementos do sistema judicial iraquiano podem cumprir com sua responsabilidade de proporcionar segurança ao povo do Iraque", disse o general americano Jerry Cannon, subdiretor-geral das operações de detenção, ao entregar a chave gigante ao ministro da Justiça iraquiano, Dara Noor-Eldeen. Segundo a ministra de Direitos Humanos, Wijdan Michael, agora seu país terá "alguma aplicação da lei" nas prisões. "Isso é histórico para nós, que estejamos transferindo a operação dessas instalações para o governo iraquiano", disse.

Desde o início da ocupação, em março de 2003, mais de 100 mil prisioneiros estiveram sob custódia dos Estados Unidos. As forças americanas só reclamaram para si a responsabilidade por 200 dos 1.500 presos de Camp Cropper, que tinham alguma relação com o governo de Saddam Hussein. Oito deles estão condenados à pena de morte.

Para Mark Katz, cientista político da George Mason University, a entrega da última prisão para o governo iraquiano é "importante para ambos os países". "É mais um sinal de que o Iraque está recuperando a sua soberania — e de que a retirada das tropas do Iraque está ocorrendo no prazo previsto", explica. Ray Walser, especialista da Fundação Heritage, um think tank conservador de Washington, considera esse é um "marco significativo", que evidencia a evolução do processo de entrega de todo o Estado iraquiano nas mãos do seu próprio governo.

"Essa é uma declaração de que os iraquianos devem assumir a plena responsabilidade pelos seus sistemas de Justiça e penal. Mas agora eles devem mostrar que podem mantê-los de acordo com padrões e práticas internacionais", afirmou Walser. As próprias forças norte-americanas, entretanto, não conseguiram fazê-lo, como ficou comprovado após as denúncias de tortura na prisão de Abu Ghraib. 

Continuidade

Mesmo com uma escalada na violência no Iraque desde que teve início a retirada, o governo americano tem conseguido cumprir, sem muito alarde, seu cronograma. A partir de 1º de setembro, contudo, a previsão é de que apenas 50 mil militares continuem em território iraquiano, apenas para dar suporte às forças do país. Essa tem sido vista por muitos, como a fase mais crítica. "Se a situação da segurança se deteriorar com o avanço da retirada dos EUA, o governo Obama poderá enfrentar um aumento da pressão dos republicanos, que devem ficar mais fortes no Congresso após as eleições em novembro deste ano, e talvez até mesmo do governo iraquiano para atrasar a retirada", observa Katz. 

Para ele, um passo importante que permitirá a retirada das tropas dos EUA "com esperança de estabilidade no Iraque" é a formação de um governo de ampla coalizão — que ainda não foi sistematizado desde as eleições de março. "As tropas americanas estão deixando o Iraque não porque o conflito no país acabou, mas porque isso faz parte da política doméstica de Obama. Então, a situação no Iraque dependerá muito do novo governo", afirma.

Lições de Abu Ghraib

Mais do que o fim de uma etapa na ocupação do Iraque, o mais recente passo dado pelas tropas americanas tem um grande valor simbólico para os dois países — e para o mundo. Após as denúncias de tortura contra presos iraquianos, comprovadas nas humilhantes fotos tiradas no centro de Abu Ghraib, o controle das prisões pelos Estados Unidos se tornou um dos pontos mais polêmicos da guerra iniciada em 2003. Hoje, o alto comando das tropas americanas no país afirma que "aprendeu" com os abusos que escandalizaram a comunidade internacional.

"Abu Ghraib nos ensinou que não estávamos preparados para cuidar de grandes massas de detidos quando iniciamos esta operação em 2003", afirmou o general Ray Odierno, comandante americano no Iraque, na cerimônia que entregou o controle de Camp Cropper às forças locais. 

Os casos de abuso contra prisioneiros vieram à tona no início de 2004, menos de um ano após o início da guerra. Na época, a imprensa americana divulgou fotos de militares americanos obrigando os detidos a ficarem em posições humilhantes, ameaçando-os com cães e de presos sendo torturados e abusados sexualmente. Uma das imagens mostrava o corpo do iraquiano Manadel Al-Jamadi, que morreu durante um interrogatório da CIA (agência de inteligência americana) em Abu Ghraib.

Após as denúncias, o Departamento de Defesa americano removeu 17 soldados e oficiais de suas funções, e 11 deles foram levados à Corte marcial e condenados. No início do governo Obama, a prisão de Abu Ghraib foi reaberta com outro nome, já sob o comando das forças iraquianas. A atual Prisão Central de Bagdá, que agora tem capacidade para 12 mil presos, passou por uma grande reforma. (IF)

Ataques contra milicianos

Pelo menos 50 pessoas morreram em dois ataques suicidas, ontem, no Iraque. No primeiro, que deixou 48 mortos e 40 feridos, um homem-bomba se explodiu na entrada principal da base do Exército iraquiano em Radwaniya, a 25km a oeste de Bagdá, no momento em que membros das Sahwa — milícias sunitas que apoiam as roças de segurança contra a Al-Qaeda — iam receber os salários. Logo depois, em Qaim, perto da fronteira com a Síria, outro suicida detonou seus explosivos num quartel das Sahwa. Dois milicianos e um policial morreram, e seis pessoas ficaram feridas.

O atentado em Radwaniya foi mais mortífero registrado no país desde 10 de maio, quando quatro carros-bombas explodiram sucessivamente no estacionamento de uma fábrica têxtil em Hilla, ao sul de Bagdá, na hora da saída dos operários. O ataque deixou 53 mortos e 157 feridos.

Criadas no fim de 2006, as milícias Sahwa foram financiadas, num primeiro momento, pelos americanos, segundo uma estratégia que contribuiu para reduzir a violência no país. Como a polícia e o exército iraquianos, são um alvo constante dos insurgentes, que às vezes realizam campanhas de castigo contra seus integrantes. Com 94 mil integrantes, as milícias passaram em janeiro de 2009 para o controle do governo, mas seus dirigentes se queixam de abandono por parte das autoridades iraquianas.

Em uma entrevista concedida ontem , o vice-presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, enfatizou que, a despeito da escalada da violência no Iraque, estão mantidos os prazos estipulados para a retirada das tropas do país. Temos que manter um 50 mil lá. Traremos para casa 95 mil", confirmou Biden.

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