Questão da energia pode ser decisiva no desfecho da tensão na Ucrânia

Entenda porque a Crimeia é o pomo da discórdia entre Rússia e Ucrânia


GloboNews

A Rússia tem uma longa tradição no xadrez, o mais cerebral e estratégico dos jogos. No tabuleiro da crise ucraniana, Vladimir Putin move uma peça por vez. Depois de avançar com seu aliado Viktor Yanukovitch, viu uma multidão tomar praças e ruas e parece ter concluído que era melhor recuar. Chegou ao ponto de declarar que o aliado simplesmente não tinha mais futuro na política.

De bobo da corte, o presidente russo não tem nada, e junto com seus mais próximos aliados fala do perigo de fortalecer um governo de inclinações neonazistas, ainda que não esteja claro o real poder dos extremistas em Kiev. Mas Putin sabe a força dos símbolos e, em plena crise, fez questão de ser visto acompanhando de perto exercícios militares.

Ao mesmo tempo, quanto mais é criticado pelos Estados Unidos e a União Europeia, insiste em demonstrar, mais do que frieza, tranquilidade. Em uma entrevista coletiva que concedeu no Kremlin, ele insistiu que não pensa em declarar guerra à Ucrânia, não defende a partição do país vizinho nem imagina anexar a Crimeia, mas deixou bem claro também que o uso da força não pode ser descartado.

“Ele consolidou muito poder em suas mãos. Não acho que ele seja irracional. Mas também não acho que ele esteja fazendo o melhor para os russos. Ele constantemente sabota as instituições russas, a legitimidade das instituições, o judiciário, os governadores, o Parlamento”, comenta o cientista político Ian Bremmer.

Ao longo de toda essa crise ucraniana, temos ouvido a repetição de palavras como soberania, integridade territorial, nacionalismo, disputas políticas. Mas o que aparece como pano de fundo é a questão da energia, representada no petróleo e no gás, que pode acabar tendo um peso decisivo nos rumos e no desfecho da crise atual.

Só a Alemanha, depende da Rússia para manter o fluxo de 43% do gás que o país precisa. Putin sabe disso e já adotou a estratégia do corte outras vezes. Nada o impede que lance mão dessa jogada de novo.

A União Europeia tomou um susto com a reação militar de Vladimir Putin aos eventos na Ucrânia. Bruxelas sabia que Moscou não tinha gostado da derrubada do governo que era seu aliado em Kiev, mas esperava que o Kremlin reagisse apenas com protestos diplomáticos. Só que as tropas russas entraram em ação, assumindo o controle da Crimeia. Embora sem confronto direto com seus aliados de longa data, os russos forçaram os militares ucranianos a ficarem em suas instalações.

Uma tentativa de soldados ucranianos para retomar sua base ocupada foi bloqueada por tropas russas com disparos para o ar e ameaças de atirar nas pernas. Para deixar ainda mais claras suas intenções, Putin autorizou a realização de exercícios militares em território russo, junto à fronteira com a Ucrânia. Incluiu disparos de foguetes e tanques contra alvos imaginários.

Soldados e navios russos impuseram controle militar e político sobre a Crimeia, e até a administração regional foi trocada por outra, mais de acordo com as posições de Moscou. O parlamento no governo regional pediu ao Kremlim para incorporar a Crimeia como território russo. Se Moscou concordar, um plebiscito ainda este mês,consultaria a população local se prefere continua como parte da Ucrânia ou se junta à Rússia.

A população na Crimeia, de maioria russa, tem demonstrado apoio à iniciativa de Putin, inclusive porque muitos adotaram a narrativa do Kremlin de que se desenrola em Kiev uma conspiração fascista, com apoio europeu e americano, para erradicar a presença russa em toda a Ucrânia. Daí a continuação do temor de que a Rússia invada outras partes da Ucrânia, onde a população seja de origem e formação cultural russa.

Após a ação militar relâmpago de Putin na Crimeia, Bruxelas percebeu que o presidente russo jogava mais pesado do que uma simples disputa política e diplomática por influência na Ucrânia. Putin adotava a postura que analistas políticos chamam de "soma-zero": ou ganha um ou ganha o outro.

A União Europeia se esforça há vários anos para atrair a Ucrânia à sua esfera de influência. A Ucrânia seria um parceiro comercial e diplomático mais próximo, com o olhar voltado para Oeste e não para o Leste e interessado na alternativa de uma União Eurasiana.

Crimeia: um pomo da discórdia

A Crimeia é uma península que avança pelo Mar Negro, no sul da Ucrânia, fronteira da Rússia. Já pertenceu à Rússia, mas foi cedida à Ucrânia em 1954 pelo então secretário-geral do Partido Comunista soviético, Nikita Kruschev. Fez isso no dia em que se comemoravam 300 anos de um tratado que unia Rússia e Ucrânia. Historiadores acham que Kruschev, ele mesmo um ucraniano, estava etilicamente empolgado demais na ocasião.

Mas ele aprovou a medida, até porque, na época, pouca diferença fazia, já que a Ucrânia era uma das repúblicas soviéticas, sob comando central em Moscou. E na Crimeia se baseava, como até hoje, a frota do Mar Negro, primeiro russa, depois soviética, agora russa de novo.

A península foi ocupada no século XIX pelos britânicos, na Guerra da Crimeia, e pelos nazistas, na Segunda Guerra Mundial. Durante o conflito, Stalin expulsou da Crimeia a população nativa dos tártaros, que são muçulmanos. Eles acabaram retornando, formam hoje 20% da população e se relacionam mal com a maioria russa e cristã ortodoxa, que alcança 54% dos dois milhões de habitantes da península.

As diferenças apareceram a partir da implosão da União Soviética, nos anos 90, quando a Ucrânia se tornou independente e o Parlamento em Moscou tentou anular o gesto de Kruschev. O desentendimento se arrastou até 1997, quando os dois países concordaram em manter a Crimeia como parte da Ucrânia e renovaram o acordo para manter na península a base da frota russa, estrategicamente importante para Moscou, porque do Mar Negro os navios russos podem atravessar o Bósforo e chegar ao Mediterrâneo.

O deposto presidente Yanukovitch renovou o acordo até 2042 e recebeu de Moscou promessas de suprimento de gás a preços camaradas. Até que Moscou mude de ideia.

Intervenção militar na Crimeia


A decisão do presidente Obama de aparecer de surpresa na sala de imprensa da Casa Branca, na sexta-feira, dia 28, para ameaçar a Rússia com graves consequências se invadisse a Ucrânia, serviu de pretexto para que o Parlamento russo aprovasse por unanimidade a intervenção militar. Era tudo o que Vladimir Putin precisava para investir contra a Ucrânia.

Pior, a ameaça de Obama era vazia, porque pouco os Estados Unidos podem fazer em represália. No máximo, gestos simbólicos. Ficou claro que desde o ano passado Putin vem jogando para impedir que a Ucrânia troque Moscou por Washington e pela União Europeia. O que aconteceu na Crimeia no último fim de semana foi a casca de banana final e Obama caiu direitinho.

O presidente americano disse que acabou a era do jogo de xadrez geopolítico. Ele acha que isso é coisa do passado, que hoje o que conta é o respeito à lei internacional, às regras de convivência e cooperação. Mas quando um líder como Putin usa o velho jogo, a comunidade internacional se vê indefesa.


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