Marinha gastou R$ 37,2 milhões para afundar porta-aviões desativado São Paulo, que havia sido vendido por R$ 10 milhões

Documentos aos quais o g1 teve acesso mostram que, após meses de idas e vindas, decisão de afundar o navio custou aos cofres públicos mais do que o triplo do valor que havia sido pago ao governo brasileiro pela carcaça da embarcação.


Por Paulo Veras | g1 PE

A Marinha do Brasil gastou mais de R$ 37,2 milhões para afundar o porta-aviões desativado São Paulo, em fevereiro deste ano, depois que o navio passou meses vagando em círculos próximo ao litoral de Pernambuco. Ao todo, 298 militares trabalharam na operação, segundo o Estado Maior da Armada, que respondeu a um pedido via Lei de Acesso à Informação (LAI) do g1.

Imagem inédita do antigo porta-aviões São Paulo sendo rebocado próximo ao litoral de Pernambuco, que consta do processo do Ibama. — Foto: Reprodução

Neste 5 de outubro, quando completa exatamente um ano que o porta-aviões desativado chegou ao litoral de Pernambuco para o que seria sua última viagem, o g1 retoma essa história para mostrar uma sequência de decisões que levaram ao afundamento da embarcação em alto mar, num prejuízo estimado em pelo menos R$ 27 milhões aos cofres públicos.

O São Paulo foi o único porta-aviões da Marinha brasileira. Após ser desativado, o casco foi vendido para a empresa turca Sök, em 2021, por R$ 10 milhões; valor quase quatro vezes menor que os recursos destinados para para afundá-lo.

Questionada pelo g1, a Marinha não explicou se a decisão de afundar o antigo porta-aviões foi baseada em algum parecer ou estudo técnico, embora afirme que era impossível salvar a embarcação.

Na época, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) avaliou que o afundamento poderia provocar morte de espécies e deterioração de ecossistemas, já que a sucata da embarcação teria 9,6 toneladas de amianto na sua estrutura - substância cancerígena proibida no Brasil desde 2017, após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

Documentos de um processo que tramitou no Ibama, ao qual o g1 teve acesso através da Lei de Acesso à Informação (LAI), mostram que os danos ao casco foram agravados pelo tempo em que o São Paulo permaneceu em alto mar.

Sequência de adiamentos e decisões contraditórias
  • O porta-aviões desativado saiu do cais do Arsenal da Marinha, no Rio de Janeiro, em 4 de agosto de 2022. Ele seria levado para um estaleiro na cidade de Aliaga, na Turquia, onde seria desmontado e reciclado;
  • Em 26 de agosto, porém, as autoridades turcas comunicaram ao Ibama que estavam retirando a autorização para a entrada do navio no país porque tinham requisitado à empresa informações sobre processos na Justiça Federal brasileira contra a exportação do navio e ainda não haviam recebido o inventário de materiais perigosos da embarcação;
  • Com a autorização da Turquia cancelada, o Ibama determinou à Sök que trouxesse o porta-aviões desativado de volta ao Brasil, até que ele pudesse ser exportado novamente;
  • O processo do Ibama mostra que, ainda durante o translado do material, a empresa pediu mais de uma vez que as autoridades brasileiras indicassem um porto para receber para o navio desativado;
  • Em 5 de outubro de 2022 a embarcação chegou ao Porto de Suape, destino sugerido pela Marinha. Mas o governo de Pernambuco se recusou a receber o material, por causa do risco ambiental do amianto - componente presente na estrutura do navio aposentado.
Navio desativado foi levado antes para o Espírito Santo

Sete dias depois de chegar em Suape, o antigo porta-aviões São Paulo foi vistoriado pela primeira vez pela empresa AWS Service, com sede em Niterói. A avaliação era uma das exigências da Marinha para que o navio atracasse em qualquer cidade do país.

O relatório da vistoria, anexado ao processo do Ibama, revela que antes de chegar a Pernambuco, o navio seguiu para outro estado. Era no litoral do Espírito Santo que o São Paulo estava em 30 de setembro, quando deu a volta em direção à região Nordeste.

Durante a disputa em relação ao destino do antigo porta-aviões, a Sök sempre disse que o Porto de Suape foi escolhido pelas autoridades brasileiras como destino por ser o mais próximo da Europa, para onde o casco tinha sido transportado.

O relatório da vistoria também apontou avarias do lado esquerdo da embarcação (bombordo) e “constatou degradação e danos estruturais”, causadas por uma “deterioração progressiva das estruturas”.

Ainda assim, a estabilidade e a flutuabilidade do casco ainda não estavam comprometidas, afirma o documento. Por isso, o laudo recomendava que o navio fosse atracado para reparos que evitassem a ampliação dos danos.

A expectativa era que, uma vez feitos os reparos, seria possível exportar novamente o casco do navio desativado para ser reciclado no exterior.

Angra aceitou receber embarcação

Pela legislação brasileira, caberia à Sök encontrar um porto e um estaleiro que aceitassem receber o material para reparo. A documentação presente no processo do Ibama revela que as duas empresas existentes em Suape recusaram o serviço:
  • o Estaleiro Atlântico Sul (EAS) disse já ter o calendário comprometido com encomendas por um prazo de seis meses;
  • o Vard Promar alegou não ter condições técnicas para receber o São Paulo porque o casco era maior do que o canal de entrada do estaleiro.
Sem ter para onde levar o navio desativado, a empresa procurou portos e estaleiros noutros estados.

No dia 31 de outubro, a companhia turca recebeu o apoio da Associação Comercial da Bahia para que a embarcação fosse rebocada para lá e, por isso, pediu ao Ibama permissão para deixar o perímetro determinado pela Marinha do Brasil pela primeira vez. O órgão ambiental respondeu que essa decisão caberia à Marinha.

Quase um mês depois desta solicitação, o antigo porta-aviões São Paulo continuava navegando no litoral pernambucano quando, em 23 de novembro, a Sök pediu que o navio desativado fosse levado de volta para o Arsenal da Marinha no Rio de Janeiro, de onde havia saído três meses e meio antes.

"Buscamos em todo o Brasil local (estaleiro ou porto) capaz de nos receber. Todos responderam negativamente ou mesmo declinaram o serviço demandado. Ninguém tem interesse de nos receber. Nossos esforços foram em vão”, justificou a empresa no texto.

Logo depois, em 28 de novembro, o Terminal Portuário de Angra dos Reis (TPAR), no Rio de Janeiro, se ofereceu para receber a embarcação para fazer os reparos e preparar a nova exportação.

Para viabilizar a ida para o TPAR, a empresa contratou uma nova inspeção no casco, feita pela própria AWS Service, realizada em 8 de dezembro de 2022. Dessa vez, a empresa apontou a presença de água do mar em alguns compartimentos.

De acordo com o relatório da AWS Service ao qual o g1 teve acesso, uma parte do casco pode ter sofrido um processo de desgaste mais acelerado pela ação do vento e das ondas do mar que forçaram avarias que já existiam. As condições encontradas na primeira vistoria haviam se agravado, mas o laudo também dizia que o afundamento não era inevitável.

“Apesar de não ser iminente o comprometimento da sua flutuabilidade, é necessário contínuo monitoramento e recomenda-se efetuar os reparos necessários no casco do ex A12 imediatamente após a chegada no porto de destino (a princípio, o TPAR)”, concluiu a vistoria.

No dia 12 de dezembro, a empresa turca pediu autorização para levar o navio desativado para Angra dos Reis. Para fazer os reparos no casco, foi contratada a Eco Verdi Mare Serviços e Logística, com sede em Niterói, no Rio de Janeiro.

No processo do Ibama, não consta nenhuma resposta dos militares, autorizando ou negando a ida da embarcação para o porto fluminense.

Navio foi novamente vendido no meio do impasse
  • Em 21 de dezembro, a Sök comunicou às autoridades brasileiras que decidiu devolver o antigo porta-aviões para a Marinha. A companhia alegou ter esgotado suas capacidades econômicas e reclamou que o Brasil não se mobilizou “de maneira séria” para resolver o problema.
  • No dia seguinte, numa decisão que não foi divulgada publicamente na época, a Sök vendeu o navio para a MSK Maritime Service & Trading, que representava os turcos no Brasil desde o leilão. Não há registro do valor de venda da sucata do navio.
  • Esta operação não foi reconhecida pelo Ibama e por outras autoridades brasileiras. Elas alegaram que o edital proibia a Sök de revender o casco do São Paulo e obrigava a reciclagem como o único destino possível para o material.
  • No mesmo dia da venda, a Marinha marcou uma reunião com os turcos para o dia 26 de dezembro, na qual discutiriam as condições para a atracação em Angra dos Reis. Um ofício de 28 de dezembro diz que nenhum representante da Sök compareceu.
Primeira reunião ocorreu no apagar das luzes de 2022

Só em 29 de dezembro de 2022, os diversos órgãos públicos brasileiros, inclusive o Itamaraty, realizaram uma reunião em Brasília para tentar resolver o caso do antigo porta-aviões São Paulo.

Na ata desta reunião, a Marinha afirmou que os representantes da companhia turca “verbalizaram” o desejo de devolver o navio.

A ata do encontro esclarece vários pontos:
  • a Marinha ainda achava que era possível navegar com o casco, mas via “risco de degradação” e alegava que o cenário poderia mudar repentinamente;
  • segundo os militares, o Brasil tinha entre três e quatro estaleiros aptos para realizar os reparos no porta-aviões;
  • o Ibama classificou o navio como um “resíduo perigoso” e disse que afundá-lo não seria a destinação adequada;
  • segundo a Empresa Gerencial de Projetos Navais, vinculada à Marinha, órgãos ambientais e Ministérios Públicos regionais estavam evitando que o reparo fosse realizado;
  • a Advocacia-Geral da União (AGU) via a venda da sucata para a MSK como uma estratégia da Sök para afundar ou abandonar o navio e não ser responsabilizada;
  • o Ibama disse que avaliaria a possibilidade de atuar junto ao governo de Pernambuco para viabilizar a atracação do porta-aviões desativado.
Afundamento no início de fevereiro

A indefinição sobre o destino do ex-porta-aviões São Paulo seguiu até o dia 10 de janeiro de 2023, quando a MSK enviou uma carta às autoridades brasileiras afirmando que, se elas não agissem dentro de 12 horas para receberem o antigo porta-aviões, a empresa não teria “nenhuma outra opção a não ser abandonar o navio” no mar.

Seis dias depois, após ser cobrada pelas autoridades, a MSK afirmou que a palavra “abandonar” foi usada no documento anterior de forma incorreta. Ao invés dela, eles alegaram que iriam “renunciar” à propriedade do porta-aviões.

Em 20 de janeiro, a Marinha assumiu o controle do casco e o levou para longe do litoral brasileiro, numa área apontada pelos militares como segura para o caso de afundamento não-programado.

Em 3 de fevereiro, o antigo porta-aviões foi afundado pela Marinha, numa área a 350 quilômetros da costa pernambucana. A profundidade do local é de 5 mil metros.

Questionada, através da Lei de Acesso à Informação, a Força Naval afirmou que, numa inspeção realizada em janeiro, novos rasgos foram identificados na embarcação, inclusive do lado direito (boreste). A Marinha concluiu, então, que seria impossível salvar o casco.

Apesar disso, nenhum parecer ou documento sobre essa inspeção foi disponibilizado pelos militares.

O destino do antigo porta-aviões brasileiro foi o fundo do Oceano Atlântico, sob protesto de ambientalistas, que alegam que a iniciativa repercutirá em danos ambientais ainda não calculados, devido à composição da sucata.

O que diz a Marinha?

Procurada pelo g1 no dia 20 de setembro, a Marinha disse que só se pronuncia sobre o assunto através de notas oficiais. A última, foi publicada no dia 3 de fevereiro deste ano, anunciando o afundamento do porta-aviões.

Nela, a Força Naval dizia que a escolha do local para afundar o navio levou em consideração a segurança de navegação e o meio ambiente, inclusive a mitigação de impactos na saúde pública, na pesca e nos ecossistemas marinhos.

Um dia depois da publicação desta reportagem, a Marinha enviou uma nova nota ao g1. Nela, afirma que:
  • "Não guarda razoabilidade dizer que o procedimento gerou prejuízo aos cofres públicos, considerando que a operação evitou prejuízos de grande monta, de ordem logística, operacional, econômica e ambiental, além de mitigar riscos à segurança da navegação";
  • "O custo de R$ 37,2 milhões não corresponde ao valor necessário para o afundamento controlado, e sim ao custo de toda a operação, desde o acompanhamento do reboque até o afundamento do casco, incluindo ações para garantir a segurança do tráfego aquaviário e a prevenção da poluição ambiental";
  • A Advocacia-Geral da União (AGU) entrou com uma ação judicial de cobrança, para que "a empresa proprietária do casco venha a ressarcir a União pelos prejuízos causados";
  • "O afundamento foi realizado de forma planejada e controlada, com base em estudos técnicos do Centro de Hidrografia da Marinha e do Instituto de Estudos do Mar Almirante Paulo Moreira";
  • A decisão de afundar o casco considerou o relatório de perícia técnica que "constatou uma severa degradação das condições de flutuabilidade e estabilidade";
  • "Todas as ações referentes ao desmanche ambientalmente sustentável, desde o início, foram tratadas de maneira compartilhada entre a Marinha, o Ibama, o Ministério das Relações Exteriores (MRE) e a AGU, no exercício de suas competências específicas";
  • Em relação ao regresso do casco ao Brasil, apresentou exigências para garantir a segurança da navegação e a prevenção da poluição ambiental no mar e nas águas interiores;
  • Não cabe à Marinha "interferir em ações de natureza privada que envolvam a seleção de estaleiros para conduzir reparos ou negociação com terminais portuários";
  • Mesmo assim, "visando ao prosseguimento da reexportação para um desmanche ambientalmente sustentável, a Marinha forneceu à Sök uma lista de estaleiros no Brasil com capacidade técnica para realizar os reparos no casco";
  • "A empresa não apresentou contrato para atracação e reparo para a execução dos serviços necessários, tampouco não renovou o seguro".

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