Retratos de um general



Por Rodrigo Uchôa, de São Paulo

Muito se discute sobre o ethos gaúcho, aquele espírito de fronteira do qual se vangloriam até mesmo os recémchegados, que introjetam esse modo de ser.

Mas de onde vem essa disposição interior, esse espírito que anima uma coletividade que nem é tão homogênea assim? Em grande parte, vem da transmissão oral - um gaúcho diria que vem das conversas ao pé do fogo, dividindo o chimarrão.

Talvez seja esse o grande mérito de "General Osorio e seu Tempo", livro do jornalista José Antônio Severo (Editora Expressão, 848 págs., R$ 89). Num romance baseado em pesquisa e principalmente na memória oral, na "história como se contava na Campanha", Severo recria a trajetória de Manoel Luís Osorio. O garoto de infância humilde ganha corpo enquanto perpassa momentos belicosos do Brasil colônia, da Independência, das guerras no Prata, das revoltas que quase levaram o país a uma secessão e, finalmente, da guerra do Paraguai. Não é pouca guerra, não são poucos os personagens que formam o panorama desses tempos. O ritmo dos acontecimentos vai sendo marcado como se a história fosse contada por quem viu as coisas, entre um mate e outro.

Por isso mesmo, uma boa carga de imaginação teve de ser usada para reconstruir diálogos e para dar verossimilhança, coerência aos personagens reais. Em certa altura, em meio a outros oficiais que se preparavam para dividir o mate, um Osorio já general mostra sua insatisfação por ter perdido seus canhões: "Foi como se tivessem me passado a mão na bunda."

O uso desse artifício é o tipo de coisa que faz os acadêmicos torcerem o nariz, pois uma liberdade literária assim passaria longe das obras historiográficas. Mas é o tipo de coisa que dá cor e leva o leitor pela mão entre as histórias que se intercalam.

Grande parte do livro é dedicada à descrição de situações diplomáticas que precederam as sucessivas guerras, as intrigas palacianas e os movimentos dos batalhões. Nesses pontos, o autor tenta ser menos "imaginativo" em relação aos personagens e a suas reações corriqueiras. E consegue manter ainda assim um ritmo de contador de histórias, o que não compromete o lado romanceado que pretende imprimir.

Entram e saem personagens que dão o tom da passagem do tempo, gente que cumpre o papel na epopeia, como David Canabarro, Bento Gonçalves, Bartolomeu Mitre, Venancio Flores, o barão de Mauá, Caxias.

Mas a grande figura é mesmo Osorio.

O autor exagera na mitificação de seu personagem principal, como que para lhe dar um brilho maior em meio a tantas tramas que poderiam ofuscá-lo. Num trecho que descreve o militar que se enamora e está pronto para pedir a mão da moça em casamento, o autor solta a verve: "Osorio era o protótipo dos heróis de folhetim: alto, forte, belo, valente, famoso, benquisto por superiores e subordinados, bem-falante. Poeta de mão cheia, tinha todas as qualidades do plebeu que encanta a princesa, inclusive uma pobreza remediada, distinta, digna."

Se é assim no campo amoroso, dá para imaginar no campo de guerra. Na apresentação do livro, o jornalista Nei Duclós descreve a obra de Severo como uma resposta aos que acham "que o país seria fruto apenas de artimanhas e escapatórias, de espertezas políticas e diplomáticas e não da vontade expressa no campo de batalha" - interpretação pertinente ao tom de militarismo cavalheiresco encontrado nas páginas dedicadas ao Osorio estritamente soldado.

De qualquer modo, como figura histórica, há no general complexidades a serem levadas em conta. Foi um republicano na juventude, mas foi mudando de posição ao longo da vida. O livro descreve um encontro de Osorio com Solano Lopez - antes do conflito que os colocaria em lados opostos do campo de batalha - em que o paraguaio fala de sua admiração pelo Império brasileiro, em contraponto às repúblicas vizinhas, sempre afundadas em golpes. Osorio defende a monarquia, por achar "muito cedo" para se entregar o país nas mãos dos partidos políticos.

Acabou por se tornar um ferrenho monarquista, fazendo uma "carreira nobiliárquica" tão brilhante quanto a militar. Foi barão, visconde e marquês.

Quando nomeado senador do Império pelo Rio Grande do Sul, foi voz contrária aos que pregavam a mudança de regime, pois achava que a república iria com certeza descambar para a adoção de uma ditadura. "Seria um desgraçado aquele que, depois de haver combatido com as armas da guerra o inimigo externo, pusesse depois essas mesmas armas ao serviço do despotismo, de perseguições e violência contra seus compatriotas", disse certa vez.

Severo descreve os últimos momentos de Osorio passando de raspão em temas de grande influência para o fim daquele mundo, daquele sistema.

Maçom, o já marechal-de-campo não quis receber a extrema-unção, por causa de suas relações ruins com a Igreja Católica. E, apesar de ter morrido uma década antes da queda da monarquia, historiadores dizem que, ao sair de cena, Osorio abriu espaço para uma nova geração de militares, os quais sofreram forte influência de militares dos países vizinhos, em sua maior parte opositores ao sistema monárquico.

D. Pedro II rompeu com o protocolo, que proibia o imperador de comparecer a enterros - a tradição dizia que isso lembraria a todos da finitude do poder. O monarca pegou a alça do caixão do marechal e o conduziu à sepultura. Não sabia que levava ao túmulo um pedacinho do suporte da monarquia - e que da perda de pedacinho em pedacinho, esse suporte estaria por terminar em sua queda.

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