Do Moskva ao Ulyanovsk - O programa soviético de navios-aeródromo

Guilherme Poggio - Poder Naval

Estratégias diferentes

O discurso soviético nos anos mais “quentes” da Guerra Fria era de que os NAes americanos não passavam de alvos de grandes dimensões e, por essa razão, fáceis de serem encontrados e afundados. Os NAes dos EUA são navios-capitais, núcleos de forças navais (Carrier Battle Groups - CBG). A esses estão subordinados os demais elementos (cruzadores, fragatas, submarinos, etc). Uma vez destruído o NAe, o CBG perde sua identidade.

O princípio da estratégia naval da URSS era inverso e baseava-se no emprego “furtivo” dos submarinos, sendo que os navios de superfície de sua marinha deveriam fornecer o apoio necessário para que aqueles pudessem executar sua tarefa. Uma estratégia bastante interessante, mas que não necessariamente excluía o emprego de NAes. Na verdade, a demora por um programa de desenvolvimento de NAes na antiga URSS possui bases políticas e históricas bastante complexas.

O começo - Projeto 1123 "Kondor"

A história da aviação embarcada moderna na marinha soviética começou com o emprego de helicópteros ASW, sendo que a ameaça dos submarinos nucleares norte-americanos armados com mísseis Polaris foi o grande pretexto. Após receber o sinal verde do governo de Moscou em 1958, a equipe de projetistas do Bureau de Nevskoye, na atual cidade de San Petersburgo, começou a trabalhar numa nova classe de cruzadores anti-submarinos dotados de aeronaves de asas rotativas denominada Projeto 1123 “Kondor”.

A marinha russa nunca havia produzido nada parecido e qualquer passo nesse campo era novidade. Não é por menos que mais de uma dúzia de versões foram elaboradas durante a fase de projeto. Como exemplo, os requisitos iniciais para um deslocamento de aproximadamente 4.500 t, aumentaram para 14.600 t no estágio de construção

O desenho final guardava certa semelhança com o francês Joanne D’arc, onde o convôo projetava-se desde a popa até a meia nau. Ali, existiam quatro marcações de convés para pouso e decolagem de helicópteros e a capacidade normal de operação era de 14 Kamov Ka-25. Através de dois elevadores, as aeronaves eram conduzidas ao convés inferior. Na proa estavam instalados os principais sistemas de armas que incluíam um lançador ASW Vikhr (SUWN-1), dois lançadores SAM Shtorm (AS-N-3), dois lançadores de foguetes anti-submarinos RBU-6000 e dois lançadores quíntuplos de torpedos. Nos bordos existiam ainda dois canhões duplos de 57 mm. Pecavam apenas no armamento ASuW, compensado pelos SSM existentes nas escoltas que compunham o grupo.

O primeiro navio da classe foi lançado ao mar em janeiro de 1964, e foi batizado com o nome da capital – Moskva (Moscou). O segundo e último exemplar da classe 1123, o Leningrad, foi completado em 1969. Ambos os navios foram classificados como PRK (Protivolodochnyy Kreyser – Cruzador Anti-submarino).

Introduzindo asas fixas

Os trabalhos para o desenvolvimento de uma novo navio-aeródromo muito mais capaz tiveram início em 1967. Denominado projeto 1143 “Krechet”, a nova classe de navios deveria ser um cruzador anti-submarino (Taktycheskoye Avionosnyy Kreyser-TAKR), com capacidade de transportar aeronaves VTOL e helicópteros.

O seu desenho final não se parecia com nada até então produzido pela indústria naval mundial. Com uma superestrutura voltada para boreste, houve a possibilidade de se construir um convés de vôo em ângulo (4,5º) no bordo oposto para operar o grupamento aéreo. Assim como o P1123, os principais sistemas de armas no navio concentravam-se na proa, e incluíam oito lançadores de SSM P-500 Bazalt (SS-N-12), dois sistemas de SAM Shtorm (AS-N-3) de médio alcance e dois Osa-M (AS-N-4) de defesa aproximada, além de canhões de 76 mm e 30 mm e foguetes anti-submarino.

Com deslocamento superior a 40.000 t, os navios dessa classe superavam o projeto 1123, e tornavam-se os maiores navios de guerra construídos na URSS. Pela sua grandeza e complexidade o projeto 1143 representou um desafio aos projetistas e aos estaleiros soviéticos.

Assim como os dois navios do projeto 1123, os estaleiros de Nikolayev (sul) ficaram responsáveis pela construção do classe 1143. O primeiro (batizado de Kiev) teve a quilha batida em julho de 1970 e lançado ao mar em dezembro de 1972. Em seguida veio o Minsk. Ambos foram comissionados em 1975 e 1978 respectivamente.

Os primeiros dois navios eram praticamente iguais. O terceiro, no entanto, apresentava algumas modificações em relação aos seus predecessores. Denominado Projeto 1143.3 ou 1143M, o novo navio tinha um estoque de mísseis P-500 reduzido para oito unidades, equipamento de sonar modificado e capacidade para transporte de combustível aeronáutico elevada, resultando num deslocamento ligeiramente superior. Mas a principal mudança não ocorreu na plataforma em si, mas sim no seu grupamento aéreo, que deveria ser composto por aeronaves VTOL supersônicas como o Yak 36P (Yak-141) e helicópteros Ka-27.

O quarto e último navio da série 1143, foi lançado ao mar em 1982 e recebeu o nome de Baku. Nessas época, o projeto Yak-141 estava mais adiantado. Além disso, o COC foi modificado para trabalhar com novo sistema de vigilância aérea e de superfície. Este operava totalmente integrado com um gerenciador de campo de batalha chamado “Sky Watch” composto por antenas planas semelhantes ao sistema norte-americano “Aegis”.

Na área de armamento foi instalado o novo sistema SAM VLS Klimok, o número de mísseis P-500 foi aumentado para 12 (observar que no navio anterior a este tinha sido reduzido), e o armamento de tubo de médio calibre foi alterado para duas torres simples de 100 mm. As novas mudanças elevaram o deslocamento para algo em torno de 45.000 t. O navio foi utilizado intensamente como banco de provas entre 1982 (ano em que foi lançado ao mar) e 1987, ano em que realmente foi comissionado. Por razões políticas, seu nome foi mudado para Admiral Gorshkov em outubro de 1990.

Completado em 1987, o Admiral Gorshkov sofreu um acidente em suas máquinas em 1992 e um grande incêndio no ano seguinte. Em fevereiro de 1994, uma de suas caldeiras explodiu, retirando-o de serviço. O navio foi reparado mas não voltou a navegar desde então, permanecendo no porto Severomorsk. Aliás, problemas na planta propulsora dessa classe foram herdados do projeto 1123, e todos os quatro navios da classe Kiev sofreram pelo menos um grande incêndio durante sua vida operacional.

Divergências políticas sobre o futuro da aviação embarcada

Em 1969 a URSS aprovou o plano de construção militar de navios para o período 1971-1980 que incluía o desenvolvimento de um projeto de navio-aeródromo operando aeronaves convencionais. Trabalhos nesse sentido tiveram início em 1970, antes mesmo do Kiev ter sua quilha batida. Em 1972, a equipe de projetistas do Bureau de Nevskoye saiu com um desenho conceitual do Projeto 1160 “Oryol”.

Tratava-se simplesmente de um NAe convencional (com catapultas a vapor), movido por reatores nucleares, deslocando algo em torno de 80.000 a 85.000 t e capaz de acomodar um grupamento aéreo de até 70 aeronaves. Um projeto que, nos seus traços básicos, assemelhava-se aos NAes norte-americanos da classe Forrestal, com exceção dos mísseis SSM, típico nos cruzadores soviéticos. No grupamento aéreo embarcado, previa-se versões navais do MiG-23 que seriam posteriormente substituídos por Su-27.

Do ponto de vista político, existiam grupos prós e contrários ao NAe dentro da Marinha e do Ministério de Defesa Soviético. Quando o Marechal Ustinov substituiu seu colega Grechko no Ministério da Defesa, o projeto 1160 foi cancelado em favor de mais unidades tipo Kiev, por acreditar que NAes com aeronaves VTOL, em termos de custo/eficiência, eram mais vantajosos.

A maré para o grupo a favor do NAe começou a mudar na metade da década de setenta quando o Projeto 1153 recebeu luz verde. Nesta época o terceiro navio da classe Kiev começava a ser construído. O Projeto 1153 era uma versão reduzida do Projeto 1160. Deslocando 70.000 t, seria capaz de acomodar 50 aeronaves, entre elas o MiG-23K e o Su-25K. Mas assim como o seu antecessor, o P1153 não saiu das pranchetas.

Somente em 1978/79 foi aprovado uma quinta unidade do projeto 1143 equipada com catapultas, mas

cancelada posteriormente. Em 1981, os integrantes do grupo pró-NAe conseguiram convencer o Ministro Ustinov a aprovar o desenvolvimento de um navio aeródromo que fosse uma versão intermediária entre o Kiev e o “Oriel”. Nasceu assim o projeto P1143.5, um NAe com tamanho intermediário e dotado de “ski-jump” ao invés de catapultas a vapor.

O Admiral Kuznetsov

Desconsiderando as divergências políticas, o desenvolvimento de NAes convencionais seria apenas uma questão de tempo, uma vez que os projetistas e os estaleiros soviéticos caminhavam nessa direção. Mas havia um impedimento legal, de caráter extra-nacional. O principal centro de construção e reparos de NAes havia sido estabelecido no Mar Negro. Ali, os estaleiros Nikolayev Sul produziram desde o primeiro PKR Moskva até o último dos TAKR (o Admiral Gorshkov). Para que os navios pudessem chegar ao Mediterrâneo, e posteriormente ao Atlântico, era necessário que estes passassem pelo Estreito de Dardanelos, que pela Convenção de Montreaux (1936), proibia a passagem de qualquer “porta-aviões” pelo estreito. Uma das tarefas dos homens de Moscou era convencer as autoridades políticas de outras nacionalidades de que o futuro NAe soviético não era um NAe real, mas sim um “Cruzador porta-aeronaves”. E, por essa razão, o P1143.5 recebeu a designação Taktycheskiy Avionosnyy Kreyser (TAKR).

O novo NAe soviético foi batizado inicialmente de Varyag em 1982, sendo renomeado em 1984 para Leonid Brezhnev e lançado ao mar no ano seguinte. Trocou de nome novamente em 1988, passando a se chamar Tbilisi. Em 1991 adquiriu seu nome definitivo, “Admiral Flota Sovetskogo Soyuza Kuznetsov” (Almirante da Frota da União Soviética Kuznetsov), ano em que foi formalmente comissionado. Nomes como Kremlin e União Soviética também foram utilizados no ocidente como referência ao navio.

Suas características colocava-o próximo do projeto 1153, com deslocamento máximo de 65.000 t e capacidade para operar até 52 aeronaves. No entanto, algumas fontes sugerem que a opção por uma rampa tipo “ski-jump” tenha ocorrido em função dos insucessos obtidos no programa de desenvolvimento de catapultas a vapor.

Uma segunda unidade, inicialmente denominada Riga e posteriormente batizada como Varyag, foi lançada ao mar em 1988, mas nunca completada. Quando a URSS se dividiu em várias repúblicas em 1991 o navio passou a pertencer à Ucrânia, que ficou incapaz de terminá-lo.

Tempos depois, a imprensa norte-americana publicou uma reportagem sobre a possível venda do Varyag para um consórcio de empresas de turismo sediadas em Macau, cujo objetivo era transformar o inacabado NAe em um hotel/cassino. Investigações realizadas pela mídia mundial revelaram que a empresa de turismo interessada na compra do navio não possuía agência em Macau. Essa firma que executava a transação era controlada por um grupo empresarial com sede em Hong Kong, cujos donos eram oriundos da região de Shandog, local onde a marinha chinesa constrói seus navios. Além disso um dos donos era oficial de carreira do Exército de Libertação Popular Chinês.

Ulyanovsk, o verdadeiro CVN

Em 1984, antes mesmo do lançamento do Kuznetsov ao mar, a equipe de projetistas do Bureau de Nevskoye já trabalhava numa versão ampliada do projeto 1143.6 denominada 1143.7.

Maior e mais poderoso, o projeto 1143.7 seria o primeiro NAe soviético com propulsão nuclear e, em função disso, capaz de desenvolver velocidades em torno de 30 nós. O navio deveria deslocar 75.000 t e transportar 70 aeronaves convencionais. Foi projetado como um híbrido e possuiria tanto uma rampa tipo "ski jump" como catapultas. Dentre as aeronaves, seriam embarcadas versões navalizadas do MiG-29, Su-27, Su-25 além de um novo projeto de aeronave AEW a ser desenvolvido pela Yakolev (Yak-44).

A primeira unidade P1143.7, denominada Ulyanovsk, teve sua construção iniciada em 1988, e paralisada em 1991 após 40% da superestrutura estar concluída. No ano seguinte foi desmontado. Uma Segunda unidade, que não chegou ao estágio inicial de montagem, teve as suas partes de metal fundidas novamente.

O desmonte da aviação naval soviética

Tanto o Moskva como o Leningrad, os primeiros passos no campo da aviação embarcada russa, foram também os primeiros a deixarem o serviço ativo. Sofriam de problemas originados ainda na fase de projeto. Eram embarcações com problemas de caturro (a proa tendia para “dentro” das ondas em situações de mar agitado) resultando em condições de navegabilidade ruins. O projeto P 1123 como um todo possuía muitos problemas mecânicos e por duas vezes o Moskva teve a sua planta propulsora reconstruída, sem falar de um grave incêndio ocorrido em 1975 na praça de máquinas.

Embora estivessem oficialmente na ativa no começo dos anos noventa, já não eram navios ativos. Salvo um pequeno cruzeiro no final de 1991, operacionalmente, o Moskva encerrou suas atividades ainda em 1983, depois de apenas 14 anos de serviço. Seu casco ficou então exposto no porto de Sebastopol (Criméia) até 1996. Destino semelhante teve seu irmão, o Leningrad.

Dos quatro navios da classe Kiev, o Minsk e o Novorossiysk deram baixa em julho de 1993 e foram vendidos como sucata para uma empresa da Coréia do Sul no ano seguinte. O reboque dos cascos ocorreu em novembro de dezembro de 1995 respectivamente. Mas após permanecer alguns anos perto de cidade coreana de Pulsan, o casco do Novorossiysk foi vendido para um estaleiro indiano e o do Minsk para uma firma chinesa. Mesmo destino teve o casco do Kiev, retirado oficialmente de serviço em 1994 e rebocado para desmonte em maio de 2000.

O Gorshkov, o mais novo deles, foi vendido para a Marinha da Índia depois de uma longa novela. Após uma década de negociação, o governo da Índia finalmente formalizou um acordo inicial com os russos em janeiro de 2004. O acordo incluiu também a aquisição de 28 aeronaves MIG-29K e seis Kamov K-31 ASW. Atualmente o navio está passando por um longo processo de modernização (realizado pelos russos), incluindo a parte de sensores e armamentos. Além disso, será adaptado para o emprego de aeronaves STOBAR em conjunto com helicópteros. Os trabalhos estão programados para terminarem em 2008, mesmo ano que o atual NAe indiano, INS Virat, dará baixa do serviço ativo.

O futuro

A situação da marinha russa é bastante deplorável nos atuais dias. A começar pelo material humano. Os soldos são baixos e, muitas vezes pagos com atraso. Grande parte dos militares mais experientes foram em busca de melhores oportunidades em outros setores econômicos. Até mesmo na marinha mercante russa e de outros países. Além da falta de mão-de-obra especializada, não há fundos para manutenção regular da frota. Um bom número de navios que entrou no estaleiros, de lá não saiu mais. Boa parte das embarcações estão formalmente na ativa, mas na prática estão muito distantes do mínimo aceitável. Como se não bastasse tudo isso, as perspectivas para da força aeronaval embarcada são muito mais sombrias.

O verdadeiro e único NAe russo foi e ainda é o Kuznetsov. Ainda incompleto, ele foi ao mar pela primeira vez em 1991, partiu de Nikolayev e nunca mais voltou para a União Soviética. Neste curto período de trânsito, o URSS oficialmente deixou de existir. Algum tempo depois chegaria a Murmansk, na então recém nascida Rússia. Somente em 1995 ele seria completado. Entre dezembro de 1995 e março do ano seguinte, o Kuznetsov retornaria ao Mediterrâneo.

Atualmente o Kuznetsov encontra-se em Murmansk, esperando por reparos. Os portos do Mar do Norte não apresentam instalações adequadas à manutenção correta de NAes. Todo o parque industrial, voltado para a fabricação da NAes na antiga URSS, estava localizado em Nikolayev, atual Ucrânia. É por essa razão que, após o desmanche da URSS, o incompleto Varyag tornou-se propriedade da Ucrânia e esta, encantada com a possibilidade de se tornar um membro do "clube do porta-aviões", acabou sendo incapaz de terminá-lo.

Pode-se dizer que o programa aeronaval russo encontra-se próximo do fim. O único NAe sobrevivente está necessitando de manutenção, incapaz de ser feita nos estaleiros russos. Os programas então em andamento (o Varyag e o projeto 1143.7) foram, há muito, paralisados. O Kuznetsov está perto de se tornar um “elefante branco” na decadente marinha russa. Talvez ainda volte a navegar, mas sua carreira operacional está terminada. Assim que for oficialmente retirado de serviço, encerrará um ciclo na história aeronaval russa do pós-guerra.

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