As "águas marrons" e o Tridente de Netuno

Eduardo Italo Pesce *

Segundo Norman Friedman, nenhuma das "escolas" clássicas e contemporâneas do pensamento estratégico naval é realmente uma "estratégia" que visa a atingir objetivos determinados.

Tais teorias cumprem o papel didático de conscientizar as lideranças e a opinião pública sobre o significado e as possibilidades do Poder Marítimo e de seu componente militar, o Poder Naval.

É preciso tomar cuidado para esclarecer corretamente o público. Este não costuma saber que os termos "águas azuis" e "águas verdes" são empregados para designar, respectivamente, o alto-mar e as áreas marítimas próximas do litoral - nem que as águas freqüentemente barrentas de rios, estuários, deltas, lagoas e baías são chamadas de "águas marrons".

Pessoas desavisadas poderiam acreditar que necessitamos de uma "Marinha de águas marrons", otimizada para operar em águas interiores, empregando somente meios de porte modesto. É preciso deixar claro que este não é - nem nunca foi - o caso da Marinha do Brasil. Nem mesmo a designação "águas verdes" se aplica inteiramente à extensa área marítima sob jurisdição nacional, conhecida como "Amazônia Azul".

Na realidade, o Brasil possui "três Marinhas em uma só": a Marinha de águas profundas (Esquadra); a tropa anfíbia da Marinha (Corpo de Fuzileiros Navais); e a Marinha costeira, fluvial e de atividades subsidiárias (forças distritais e Serviço Hidrográfico). Estas três ramificações de nosso Poder Naval são igualmente importantes e vitais.

Cerca de um terço dos navios em serviço constitui a Esquadra, enquanto que dois terços integram as forças distritais e o Serviço Hidrográfico. Os meios aéreos incluem a Força Aeronaval e os esquadrões distritais. Do mesmo modo, o CFN inclui a Força de Fuzileiros da Esquadra e os grupamentos regionais, com seus respectivos meios.

As bacias fluviais internacionais do Amazonas e do Prata contam com a presença da Marinha do Brasil. Entretanto, o controle das fronteiras é atribuição da Polícia Federal. A Marinha atua apenas na fiscalização relativa à segurança da navegação e - ao contrário do que alguns pensam - não tem poder de polícia para combater o narcotráfico, o tráfico de armas e o contrabando.

O Brasil não é banhado por mares estreitos, mas tem acesso irrestrito às vastidões oceânicas do planeta. Grande parte de seus interesses marítimos está situada além da "Amazônia Azul", no Atlântico Sul e mesmo em outros oceanos. Alguns de seus principais parceiros comerciais encontram-se hoje na face oposta do globo. Os principais países da Ásia estão expandindo seu Poder Marítimo e seu Poder Naval.

O entorno estratégico do Brasil está quase todo localizado dentro da área de instabilidade do "novo mapa do Pentágono", que se estende do Noroeste da América do Sul à África, ao Oriente Médio, à Ásia Meridional e ao Sudeste Asiático. Nessa extensa área marcada por conflitos, também conhecida como "fosso", diversos países correm o risco de se tornar "Estados fracassados".

Os conflitos interestatais tendem a ser menos frequentes. Agora, o "inimigo" pode não ser um Estado organizado, mas um grupo terrorista ou outra organização criminosa qualquer. As principais potências têm investido na capacitação de suas Forças Armadas para participar de operações multinacionais de tipo expedicionário - inclusive em operações de paz, sob os auspícios da Organização das Nações Unidas (ONU).

No ambiente marítimo, as ameaças irregulares à segurança dos Estados atuam principalmente em águas costeiras. O combate a tais ameaças ocorre junto ao litoral dos países de origem - tornando

necessário o emprego de meios flutuantes com capacidade oceânica, em operações de interdição marítima ou de projeção de poder. Os países-alvo é que costumam ter Marinhas constituídas por meios de emprego costeiro.

Para o Brasil, a principal ameaça externa, oriunda de seu entorno estratégico, talvez seja o risco de colapso dos Estados aí localizados. Isso poderia gerar um fluxo incontrolável (inclusive por via marítima ou fluvial) de refugiados ou de grupos armados em fuga, rumo ao território brasileiro – podendo levar a um envolvimento do Brasil nos conflitos internos de outros países.

A diversidade das atribuições de nossa Marinha indica a conveniência de mantermos um Poder Naval balanceado, capaz de atuar em toda a extensão do Atlântico Sul. A composição das forças navais, aeronavais e de Fuzileiros Navais deve refletir as missões específicas, atribuídas aos diferentes componentes.

Para operações em "águas marrons", principalmente na Amazônia e no Pantanal, as forças distritais de nossa Marinha devem ser dotadas de meios flutuantes, aéreos e de fuzileiros navais apropriados. Tais meios também poderão integrar o componente naval de forças de paz enviadas ao exterior.

Ao optar por uma linha de ação polivalente para a defesa de seus interesses nacionais nosso país seria percebido, pela comunidade internacional, como possível aliado ou parceiro para coalizões, e não como potencial adversário ou - o que seria pior - como total nulidade.

Para atender às necessidades de ampliação, renovação e modernização de nosso Poder Naval, é preciso que o Programa de Reaparelhamento da Marinha (PRM) seja aprovado e executado integralmente. A crônica insuficiência de recursos vem dificultando os investimentos na defesa nacional.

Essa situação talvez só possa ser revertida quando o Orçamento da União deixar de ser apenas autorizativo, tornando-se impositivo.

Os limites da área de segurança do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar), que vigoraram da 2ª Guerra Mundial até o fim da Guerra Fria, não mais se aplicam às operações de nossas Forças Armadas. Como diria alguém conhecido: "Jogar na retranca, dentro da própria área, só com muita sorte permite alcançar o empate. Os mais fortes aprendem a jogar bem na área... do adversário!"

* Especialista em Relações Internacionais, professor no Centro de Produção da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Cepuerj) e colaborador permanente do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Escola de Guerra Naval (Cepe/EGN).

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