Acertar o alvo é fácil

Um ataque liderado pelos Estados Unidos contra a estrutura militar da ditadura síria pode até coibir o uso de armas químicas, mas os riscos para o mundo podem ser ainda maiores do que não fazer nada 

Veja

Ao apresentar na sexta-feira 30 as provas colhidas pelos serviços de inteligência americanos de que foi obra do ditador sírio Bashar Assad o massacre de 1429 pessoas, das quais 426 eram crianças, há duas semanas em doze localidades próximas a Damasco, o secretário de Estado John Kerry afirmou: 

“O mundo não pode deixar um ataque químico sem punição”. Na avaliação do governo americano, essa é a razão que justifica enfrentar todos os riscos associados a entrar numa aventura militar na Síria, o país do Oriente Médio cuja guerra civil já matou mais de 100000 pessoas. Por mais que os Estados Unidos não tenham o menor apetite por se envolver em mais um conflito longínquo — custou muito sair do Iraque, que os americanos invadiram em 2003. e a encrenca no Afeganistão ainda está longe de terminar —, o presidente Barack Obama se viu, na semana passada, obrigado a cumprir o que prometeu um ano atrás. Na ocasião, quando a guerra na Síria ainda não tinha provocado a metade da contagem de mortes atual, e quando uma intervenção militar externa ainda parecia ter chance de abreviar a matança, acelerando a queda de Assad, Obama disse que só tomaria uma atitude mais direta se o ditador cruzasse uma “linha vermelha”, ou seja, utilizasse armas químicas.

Depois de pôr o pezinho algumas vezes para além desse limite nos últimos meses, com ataques químicos de pequena escala contra a própria população, o regime de Assad ousou uma matança de grandes proporções no dia 21 passado contra os civis que vivem em áreas dominadas pelas forças rebeldes. Se não agisse com firmeza desta vez, Obama não apenas perderia credibilidade aos olhos do regime sírio, que se sentiria livre para usar seu arsenal de gases sem pudores, como daria um péssimo exemplo a outros países párias empenhados em produzir armas de destruição em massa, o que inclui o Irã e a Coreia do Norte com seus programas nucleares. No jogo de pressão que exerce sobre o Irã, por exemplo, o governo americano já declarou que não descarta nenhuma opção, nem a militar, para impedir que os aiatolás tenham uma bomba atômica. Que chance a comunidade internacional teria de pressionar os iranianos novamente se ficasse claro que as ameaças americanas não têm valia?

O mundo certamente não quer que o uso de armas químicas, biológicas e nucleares — que se caracterizam por ter um poder de destruição tão vasto que acabam inevitavelmente vitimando um grande número de civis — se tome banal. Um ataque militar americano até tem potencial para diminuir a capacidade do governo sírio de utilizá-las novamente, destruindo cirurgicamente a artilharia pesada e o poderio aéreo de Assad. Os cinco destróieres americanos enviados ao Mar Mediterrâneo, cada um armado com pelo menos quatro dezenas de mísseis Tomahawk, têm capacidade de fazer isso a uma distância de mais de 1600 quilômetros do alvo, sem expor os navios e os tripulantes, e sem precisar enviar soldados ao território sírio. Mesmo que, com isso, se consiga coibir ou ao menos desincentivar o uso de armas químicas por Assad, a operação carrega consigo uma série de riscos. Eis os principais: 

Ao visarem a infraestrutura militar da Síria, os mísseis americanos podem acabar acertando fábricas ou estoques de armas químicas. Isso poderia liberar uma grande quantidade de gases tóxicos no ar, afetando a população civil que vive nos arredores. Os estrategistas militares americanos já avisaram que evitarão esses alvos, mas como em toda guerra pode não sair como planejado. 

Apesar da acurácia dos mísseis Tomahawk, capazes de acenar um carro com uma margem de erro de apenas 10 metros, como em qualquer bombardeio há o risco de um ataque causar a morte de civis. O regime de Assad, mestre em explorar a ideia de um inimigo externo diabólico, vai usar cada imagem de sírio mono para provar que os Estados Unidos estão promovendo um ataque ilegítimo. 

Assad e, principalmente, os seus aliados libaneses do Hezbollah, um grupo radical xiita, podem retaliar. A maneira mais eficiente será atacando Israel, que na semana passada começou a distribuir máscaras de gás para proteger a população de armas químicas.

O regime sírio, como demonstração de força, pode intensificar os ataques químicos contra a própria população, desafiando os Estados Unidos e obrigando Obama a se envolver mais profundamente no conflito. De fato, Assad demonstra não estar preocupado com a repercussão internacional de suas atrocidades. Na semana passada, foi divulgado um vídeo que mostra crianças sírias com o corpo cheio de queimaduras, com a pele se soltando, e cobertas de uma pasta branca. Segundo os rebeldes, tratou-se de um ataque do governo contra uma escola em Alepo, cidade em parte controlada pelas forças anti-Assad, Roque Monteleone Neto, professor da Escola Paulista de Medicina que foi perito da ONU no Iraque, analisou o vídeo a pedido de VEJA e avaliou que parece mostrar um ataque com agentes vesicantes. que causam danos à pele e alterações respiratórias. Incluem-se nesse grupo de armas químicas os gases mostarda, fosgênio e lewisita, que já foram usados na I Guerra.

Com as forças anti-Assad infiltradas por islamistas, inclusive por membros da Al Qaeda, um ataque externo que precipite a queda do regime pode vir seguido de uma guerra civil entre as facções rebeldes, e as armas químicas poderiam cair nas mãos de terroristas.

Só resta torcer para que o bombardeio da Síria não tome as coisas ainda piores do que estão.


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