América-Índia-Rússia, mísseis num triângulo com cheiro a Guerra Fria

Trump terá agora de decidir se retalia contra Modi por comprar um sistema de mísseis a Putin e contrariar assim as sanções contra a Rússia por causa da ingerência nas eleições presidenciais americanas de 2016.


Leonídio Paulo Ferreira | Diário de Notícias

Donald Trump prometeu esta semana uma decisão "em breve" sobre se isenta ou não a Índia das retaliações previstas aos países que comprem material militar à Rússia, como é o caso dos cinco sistemas de mísseis S-400 Triumf que Vladimir Putin negociou com Narendra Modi no início do mês, numa visita a Nova Deli. Um negócio no valor de cinco mil milhões de dólares, que desafia as sanções declaradas pelos Estados Unidos contra a indústria militar russa como punição pela intromissão de Moscovo nas presidenciais americanas de 2016, que Trump ganhou. Mas hostilizar a Índia, potência económica emergente e aliada potencial num cenário de crescente tensão com a China, pode não ser do melhor interesse para os Estados Unidos.

Putin e Modi numa conferência de imprensa conjunta em Nova Deli no dia 5 | Foto EPA/HARISH TYAGI

"Não creio que Trump esteja disposto a adotar uma postura mais inflexível e a impor sanções, uma vez que os interesses económicos e estratégicos dos Estados Unidos relativamente à Índia se deverão sobrepor. Desde logo, os Estados Unidos e a Índia estão em negociações para obter um acordo comercial, que Trump gostaria de anunciar como um triunfo da sua estratégia 'bilateral', no seguimento dos novos acordos com o Canadá e o México; por outro lado, empresas americanas como a Lockheed e a Boeing têm neste momento importantes contratos de fornecimento de equipamento militar à Índia que poderiam ficar comprometidos caso Trump não eximisse a Índia das sanções previstas no chamado CAATSA", afirma Luís Nuno Rodrigues, professor no ISCTE-IUL e especialista em política externa americana.

De facto, o triângulo Estados Unidos-Índia-Rússia não é fácil de entender e muito menos de gerir, sobretudo do ponto de vista de Washington. A América, que se vê como campeã dos valores democráticos, teria na Índia, a tal maior democracia do mundo, um parceiro óbvio e incondicional. Mas tal nunca aconteceu, nem sequer no tempo da Guerra Fria, em que era, pelo contrário, manifesta a relação amistosa entre a Índia e a União Soviética. Aliás, vem dessa época a tradição indiana de procurar os russos como fornecedores de armamento e nem o fim do sistema comunista em Moscovo nem a ascensão dos nacionalistas hindus do BJP ao poder em Nova Deli, em detrimento do velho Partido do Congresso de Jawaharlal Nehru e Indira Gandhi, alterou muito o cenário.

"A parceria entre a Rússia e a Índia tem um caráter especialmente privilegiado e estratégico. Desenvolve-se, com dinamismo, à base sólida da amizade histórica e simpatia sincera entre os nossos povos. Temos posições coincidentes ou bem próximas quanto aos temas atuais da agenda global. Empenhamo-nos no trabalho concertado e mutuamente benéfico, nomeadamente, nas Nações Unidas, BRICS, Organização de Cooperação de Shangai, G20", diz ao DN Mikhail Kamynin, o novo embaixador da Federação Russa em Portugal.

"Há poucos dias que se realizou, de 4 a 5 de outubro, a visita oficial do presidente Vladimir Putin à Índia, contribuindo ainda mais para o incremento ulterior dos laços de cooperação multifacetada. É natural que uma das vertentes desta parceria é a cooperação técnico-militar, legitimamente concretizada pelos dois Estados soberanos em conformidade com as normas do direito internacional. Esta não se limita a fornecimentos do equipamento militar russo, mas abrange uma gama bastante ampla de assuntos, inclusive no que se refere à produção conjunta do material de defesa moderno ou à realização de manobras com a participação dos nossos amigos indianos", acrescenta o diplomata russo.

Em vésperas da visita de Putin a Nova Deli os Estados Unidos fizeram alertas claros a Modi para os riscos de violar o CAATSA (Countering America's Adversaries Through Sanctions Act), mas o primeiro-ministro indiano manteve a sua decisão. Segundo os analistas militares indianos citados pelo Financial Times , os sistemas de mísseis, a serem entregues no espaço de dois anos, destinam a proteger as grandes cidades e também locais estratégicos como os campos petrolíferos de eventuais ataques. Tradicionalmente, o grande inimigo da Índia é o Paquistão, com o qual já travou três guerras desde a independência de ambos em 1947, e hoje os dois países são potências nucleares. Também a China é vista como uma ameaça nos círculos indianos, onde a guerra breve de 1962 não foi esquecida, tanto mais que por vezes os militares de ambos os lados voltam a envolver-se em escaramuças nos Himalaias, onde há fronteiras do tempo do Império Britânicas da Índia que Pequim não reconhece. E a China tem o segundo maior orçamento militar, enquanto a Índia é o maior importador de armas, segundo dados do SIPRI, instituto sueco sediado em Estocolmo.


A decisão de Trump pode ou não irritar Putin, que não aprecia que os americanos se intrometam nos seus negócios de armamento, indústria muito importante para a economia russa, mas é sobretudo Modi que sofrerá as consequências se for negativa, e isto num momento em que precisa que a taxa de crescimento do PIB aumente e para tal conta com o investimento externo, nomeadamente dos Estados Unidos, ao qual apelou em setembro num encontro com a câmara de Comércio Indo-Americana em Nova Deli. E ainda por cima o primeiro-ministro tem de saber gerir entre interesses económicos imediatos e a fortíssima tradição de não-alinhamento no conflito entre as grandes potências.

Nota Diana Soller, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI), que "a Índia tem uma politica externa discreta apesar de estar a fazer um caminho paulatino para o estatuto de grande potência". Recorda ainda a co-autora do recém-publicado Trump: O Método no Caos, que "apesar de uma tradição de não-alinhamento, em 1971 Indira Gandhi assinou um acordo de amizade com a União Soviética, que se tornou um aliado fundamental da Índia até ao fim da Guerra Fria. Apesar das devidas diferenças, ainda hoje a administração indiana tende a ver a Rússia como um aliado, daí que a compra de armamento a Moscovo não seja de todo surpreendente."

Soller, que enquanto estudava para o doutoramento em Miami foi investigadora na Observer Research Foundation de Nova Deli, realça que "além disso, a Índia tem uma grande desconfiança relativamente aos Estados Unidos por três razões essenciais. Primeiro porque Washington fez um acordo com o Paquistão - o maior rival indiano - em 1954, que causou grande mal-estar em Nova Deli. Em segundo lugar, porque a elite indiana considera que é tratada pelos Estados Unidos com double standards. A Índia olha para si própria uma democracia pacífica e não compreende como é que os Estados Unidos nunca tiveram uma relação preferencial consigo. A terceira razão, que decorre das outras duas, é que a opinião pública indiana também tende a ser pouco favorável a relações privilegiadas ou qualquer tipo de dependência de Washington, o que concorre para a escolha de Moscovo como parceiro comercial".

Velhas alianças, pragmatismo negocial, desconfianças tradicionais, tudo se conjuga mesmo para tornar complicado o tal triângulo Washington-Nova Deli-Moscovo, hoje como no tempo da Guerra Fria. A isto há que somar a crescente influência da comunidade de origem indiana nos Estados Unidos - Nikky Halley, até agora embaixadora americana na ONU tem raízes indianas, assim como Bobby Jindal, que foi governador da Luisiana - e a própria personalidade de Trump, que nunca escondeu que gostaria de encontrar um terreno de entendimento com a Rússia de Putin e ainda está na memória de todos o bom ambiente da cimeira entre ambos na Finlândia. Nesse encontro de meados de julho em Helsínquia ficou evidente a contradição entre a abordagem de Trump em relação à Rússia e aquela que defende a máquina diplomática americana. Mas também a liderança indiana é hoje muito menos preconceituosa em relação aos Estados Unidos, e desde o início o BJP tem optado por um modelo de desenvolvimento económico muito mais liberal do que era regra para o Partido do Congresso, protecionista até pelo menos 1991, quando com Narasimha Rao como primeiro-ministro se fez a primeira abertura. E Bill Clinton, enquanto presidente, manteve boa relação com Atal Vajpayee, primeiro-ministro oriundo do BJP, apesar dos testes nucleares. E Bush filho também, em especial depois do 11 de Setembro.

"A República da Índia depois da sua independência em 1947, através do então primeiro-ministro Nehru, adotou a política de não-alinhamento e quis evitar ser aliado cego de um dos dois polos dominantes, URSS e NATO liderada pela América na época da Guerra Fria. Mas por razões estratégicas de natureza interna e externa, a Índia teve de inclinar-se para o lado da União Soviética porque desde a sua independência tem tido uma vizinhança muito difícil e hipótese da guerra sempre foi e ainda é uma realidade inevitável e um dos vizinhos, o Paquistão, já era membro do bloco americano. Estas e outras razões levaram a Índia e a Rússia tornarem-se amigos de todos os tempos", explica Shiv Singh, professor de Estudos Indianos na Universidade de Lisboa.

Acrescenta o académico, senhor de um português fluente, que "a maior democracia do mundo, a Índia, nos últimos 20 anos teve um crescimento económico, social e tecnológico de tal forma que hoje todas as nações querem ser amigas da Índia e estão dispostos a abrir as exceções exclusivas à Índia como sem ser signatária do tratado de não-proliferação, popularmente conhecido por TNP, a América assinou e ofereceu a tecnologia nuclear para os fins pacíficos e também o apoio público dela e dos vários países do Grupo do Fornecimento Nuclear para que a Índia possa ser um membro deste grupo, o objetivo que ainda está para alcançar. A América tinha recusado de dar um supercomputador e bloqueou todas as possibilidades de ter um em 1985 e hoje são aliados em todas as áreas que podemos imaginar. Recentemente a Índia finalizou com a Rússia o contrato de compra dos mísseis S-400 e conseguiu evitar as sanções americanas."

Num contexto internacional menos estável do que possa parecer (por exemplo, a parceria da Rússia com a China, baseada em interesses económicos e vontade mútua de contrariar supremacia americana, está sujeita a potenciais choques na Sibéria, enquanto o tradicional apoio americano ao Paquistão deixou de ser um dado garantido, por causa do Afeganistão), a Índia acaba por ser um parceiro cobiçado. E para manter algum equilíbrio nas suas relações com Washington e Moscovo, até na questão do armamento Nova Deli tem sido inteligente na gestão: diversifica os fornecedores, recorrendo a americanos, franceses e israelitas, mas não desistindo dos russos, que garantem as peças de substituição para os equipamentos mais antigos.

De qualquer forma, um gigante como a Índia, já sexta potência económica mundial, não é facilmente pressionável por sanções. Tanto o secretário de Estado Mike Pompeo como o secretário da Defesa, Jim Mattis, já deixaram entender ser a favor de isentar a Índia de represálias. E um porta-voz da embaixada americana em Nova Deli, citado pela imprensa indiana, relembrou que "o sistema de sanções visa a Rússia e não prejudicar as capacidades militares dos aliados". A China, que comprou um sistema antimíssil idêntico, está a ser punida por decisão de Trump mas isso faz parte do braço-de-ferro atual até a nível de tarifas, enquanto a Turquia, parceiro na NATO, espera uma decisão.

"A Índia e a América hoje são duas democracias maduras e têm abertura para concordar nalgumas áreas e discordar noutras, mas continuam a ser parceiros estratégicos e ao mesmo tempo continuam a ter as suas independências para alcançar os seus interesses com outros países que não necessariamente são tão amigos hoje ou da Índia ou da América", sublinha Singh.

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