Entre o fortalecimento dos BRICS e a dependência por equipamentos da OTAN, qual é o caminho para o Brasil?

Thomas Malthus ficou famoso por calcular, no século XIX, que a população estava crescendo em escala geométrica, enquanto a produção de alimentos crescia em escala aritmética, logo, faltaria alimentos.

Por Prof. Dr. Vitelio Brustolin e Alexandre Galante | Redação Forças de Defesa

Esse conceito ganhou maior visibilidade na área militar em 2004, em um artigo de Jurgen Brauer e Paul Dunne que usa a ideia de “Malthusianismo Militar” (termo que já vinha sendo debatido em economia de defesa desde a década de 1980).
A ideia é simples: o custo da tecnologia cresce em escala geométrica, enquanto o orçamento dos países cresce em escala aritmética (quando cresce). Logo, não haveria dinheiro para se investir em novas tecnologias. Mesmo países com Produto Interno Bruto (PIB) elevado – e percentual significativo alocado em Defesa – precisariam fazer parcerias estratégicas para criar tecnologias bélicas. Esse foi o caso, por exemplo, dos Estados Unidos, que criaram um consórcio internacional (o Joint Strike Fighter) para desenvolver o caça F-35.

Qual é a consequência dos custos e da produção conjunta de armamentos entre os países? A principal delas é que parcerias militares precisam ser de longo prazo, especialmente quando há compartilhamento de propriedade intelectual sobre tecnologias (inclusive os famosos offsets, os acordos de compensação). Contudo, mesmo a simples compra de um armamento “na prateleira” requer confiança de ambos os lados.

Afinal, que país quer estar na mesma situação da Argentina na Guerra das Malvinas, quando teve dificuldades para usar os mísseis Exocet vendidos pela França? Primeiro porque os instrutores franceses não passaram todas as informações sobre a operação dos mísseis devido ao embargo imposto pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Segundo, porque a França teve que ceder as frequências de operação do radar dos mísseis ao Reino Unido sob demanda de Margareth Thatcher.

Dito isso, em 2013, quando o Brasil decidiu adquirir os caças Gripen NG da empresa sueca Saab, uma das razões alegadas para a decisão foi o fato de a Suécia não ser membro da OTAN. Esse argumento não é mais válido. Após 200 anos de neutralidade, neste momento a Suécia está em fase de ratificação e irá se tornar tão membro da OTAN quanto a França e os Estados Unidos – países cujas empresas Dassault e Boeing competiam com a Saab no programa de aquisição FX-2.

Em 2021, o Brasil assinou um memorando de cooperação em segurança cibernética com a Finlândia. Esta desenvolveu grandes capacidades na área, após sucessivos ataques provenientes da Rússia. Apesar dos ataques, a Finlândia vinha se mantendo neutra havia 70 anos. Isso também mudou. O ataque da Rússia à Ucrânia abriu uma janela de oportunidade para a Finlândia. Neste momento, ao lado da Suécia, o país está em processo de ratificação de seu ingresso à OTAN.

Suécia e Finlândia não foram obrigadas pela OTAN. A agressão de Putin à Ucrânia levou o apoio das populações e dos parlamentares desses países pelo ingresso à Organização a níveis recordes. A princípio, Putin reclamou e ameaçou, mas após promover sucessivos ataques cibernéticos e invasões do espaço aéreo desses países bálticos, percebeu que não conseguiria impedir o ingresso de ambos na OTAN e acabou declarando que não se importava.

Em 2019, o Brasil foi designado um “parceiro preferencial extra-OTAN” dos Estados Unidos. Para conseguir essa designação, juntamente com o apoio dos EUA para ingressar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil abriu mão do status de país em desenvolvimento na Organização Mundial do Comércio (OMC). Status esse que nem a China – segunda maior economia do mundo – abriu mão, pois representa perda de proteção para a produção nacional. Em março de 2020, houve um segundo passo: os governos do Brasil e dos EUA firmaram o Acordo de Pesquisa, Desenvolvimento, Teste e Avaliação (RDT&E).

Em 2021, militares da Marinha do Brasil participaram de exercícios militares com a OTAN, justamente no Mar Negro, agora parte do teatro de operações da guerra na Ucrânia.

Ao longo deste artigo elencamos outros fatos que demonstram a dependência das Forças Armadas brasileiras a equipamentos fornecidos majoritariamente por países da OTAN. Ao final, tecemos algumas considerações sobre as consequências disso para a política externa brasileira, sobretudo com relação aos BRICS. O intuito não é apresentar todas as aquisições de armamentos e acordos militares do Brasil, mas sim pontuar alguns dentre os mais relevantes.

Exército

A OTAN foi criada em 1949, no contexto da Guerra Fria, para fazer frente à então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), sobretudo após o Bloqueio de Berlim de 1948. Poucos anos depois, em 1952, um acordo de cooperação militar com os Estados Unidos acabou por amortecer o desenvolvimento tecnológico militar brasileiro – que passou a ter acesso a equipamentos obsoletos a baixo custo e, por isso, deixou a produção local em segundo plano.

Durante décadas o alinhamento do Brasil com os EUA se manteve. Foi apenas em 1977, quando o governo de Ernesto Geisel denunciou o acordo que havia sido assinado em 1952, que esse alinhamento teve uma breve pausa. A denúncia do acordo levou o Brasil a priorizar, durante algum tempo, a própria indústria bélica.

Apesar de ter desenvolvido projetos próprios de carros de combate nos anos 1980, como o EE-T1 Osório da Engesa e o MB-3 Tamoyo da Bernardini, o Brasil não conseguiu produzi-los em série e continuou dependente de fornecimento externo. No final dos anos 90 recebeu tanques M60 dos EUA e Leopard 1A5 da Alemanha para substituir seus antigos M41 de procedência americana.

Em 2013 o Brasil comprou da Alemanha, outro país membro da OTAN, 34 blindados antiaéreos Gepard 1A2 usados, para a defesa antiaérea da Copa das Confederações, visita do Papa Francisco, Copa do Mundo e Olimpíadas.

Em 1978 foi fundada a Helibras, para produzir helicópteros de uso civil e militar (dentre estes os do projeto H-XBR). Em 1988 a Helibras formou um consórcio com Aérospatiale e Engesa, vencendo a concorrência internacional para fornecer helicópteros ao Exército brasileiro. Desde 2006, contudo, a Helibras é uma subsidiária da Airbus Helicopters. A Airbus, por sua vez, é um consórcio europeu, tendo como sedes principais as cidades de Marignane (França) e Donauwörth (Alemanha).

É importante ressaltar também que as Forças Armadas brasileiras adotaram o Sistema OTAN de Catalogação (SOC) desde 1972, para atender o gerenciamento de suprimentos. O SOC foi adotado porque é utilizado também pelos principais países produtores dos equipamentos utilizados pelo Brasil.

Em março de 2022 o Brasil tentou se associar ao Centro de Defesa Cibernética da OTAN. Ao longo de 2021 o governo brasileiro instruiu as embaixadas em países-membros do CCDCOE (Centro de Excelência de Defesa Cibernética Cooperativa) a consultar os respectivos governos sobre a aceitação de uma candidatura do Brasil. O setor Cibernético é elencado na Estratégia Nacional de Defesa (END) como um dos três estratégicos para o Brasil e é atribuído prioritariamente ao Exército. Os outros dois setores são o Nuclear (Marinha) e Espacial (Força Aérea).

Marinha

No final dos anos 1960, a Marinha do Brasil decidiu abandonar um contrato de compra de contratorpedeiros de escolta novos dos EUA para comprar fragatas do Reino Unido.

O Brasil decidiu comprar os navios no mercado europeu porque os EUA não queriam ceder ao País os equipamentos mais sofisticados da época para a guerra antissubmarino. Esta era a tarefa principal da Marinha diante da ameaça dos submarinos soviéticos em uma provável nova Batalha do Atlântico, em caso de conflito Leste-Oeste.

A compra das seis fragatas Mk.10 (classe “Niterói”) do estaleiro inglês Vosper Thornycroft, dotadas de um sistema de armas com equipamentos ingleses, americanos, franceses, suecos e italianos possibilitaram um salto tecnológico de 30 anos em relação aos meios navais operados pela Marinha do Brasil até então. Cinco navios da classe ainda estão em serviço depois de passarem por um processo de modernização a partir do início dos anos 2000 e serão finalmente substituídos pelas novas fragatas classe “Tamandaré”, construídas no País pelo consórcio Águas Azuis, composto pelo estaleiro alemão thyssenkrupp Marine Systems, Embraer Defesa e Segurança e Atech.

O Programa Nuclear da Marinha começou a ser desenvolvido em 1979 e, segundo projeções oficiais, deve se estender ao longo da década de 2030. É um dos poucos programas da defesa brasileira que permeia décadas e atravessa diferentes governos e que visa produzir um submarino de propulsão nuclear.

Em meados dos anos 1980, com o objetivo de começar a produzir seus próprios submarinos, a Marinha do Brasil fechou um acordo com o estaleiro alemão HDW para a aquisição de quatro submarinos IKL-209/1400 (classe Tupi). O primeiro foi produzido da Alemanha e os demais construídos no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro com transferência de tecnologia. Um quinto submarino IKL-209 aperfeiçoado, o Tikuna, também foi construído no AMRJ.

O know-how absorvido na produção dos submarinos alemães deu origem a projetos dos submarinos nacionais SNAC-1/2 e SMB-10, mas que não foram adiante por limitações técnicas e financeiras.

Sendo assim, em 2008, foi firmado um acordo com a França, país membro da OTAN, para a prestação de assistência técnica e capacitação brasileira para a concepção, o projeto, a fabricação, a operação e a manutenção de quatro submarinos convencionais classe Scorpène modificados (S-BR) e um submarino de propulsão nuclear, com a parte da propulsão de projeto e produção exclusivamente brasileiros. Conforme pontuado acima, o setor Nuclear, atribuído à Marinha, é elencado entre os três estratégicos na END.

Força Aérea

No início dos anos 1970 a Força Aérea comprou 16 caças Dassault Mirage IIIE/D da França diante da recusa dos EUA em fornecer os caças Northrop F-5A. Os estadunidenses alegaram preocupação com o equilíbrio de poder da América do Sul.

Após a compra dos Mirage III da França, em outubro de 1974, a FAB recebeu o sinal verde do governo dos EUA e encomendou à Northrop 42 caças F-5 (36 do modelo E, Tiger II e 6 do modelo B).

Com a compra dos Mirage III, o Brasil também comprou um sistema de radares da França da empresa Thomson-CSF criando o Sistema de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo – SISDACTA, inicialmente cobrindo a região Sudeste com o primeiro CINDACTA – Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo. Os CINDACTAS II (Região Sul) e CINDACTA III (Região Nordeste) também foram equipados com os sistemas franceses.

Já o CINDACTA IV que cobre a Região Norte, acabou recebendo radares e equipamentos da Lockheed Martin dos EUA, depois de uma concorrência acirrada para fornecer os equipamentos do Projeto SIVAM (Sistema de Vigilância da Amazônia.

No início dos anos 1980, o Brasil, a convite da Itália (membro da OTAN desde 1949) decidiu participar do desenvolvimento do caça-tático subsônico AMX. Este – que voou pela primeira vez em 1984 e entrou em serviço na FAB em 1989 – era equipado com sistemas sofisticados e havia restrições para a venda de alguns deles para países não pertencentes à OTAN ou aliados “não preferenciais”, como era o caso do Brasil. Por causa dessas restrições, a FAB teve que optar por dotar o AMX brasileiro com dois canhões franceses DEFA de 30mm no lugar do estadunidense M61A1 Vulcan rotativo de 20 mm usado no avião italiano.

O projeto e a coprodução do AMX pela Embraer permitiram à companhia adquirir conhecimento para os futuros projetos de jatos regionais, como as famílias ERJ e E-Jets, campeões de vendas internacionais. É preciso ressaltar que os jatos da Embraer utilizam sobretudo aviônica, motores e sistemas ocidentais.

Da mesma forma, o novo cargueiro KC-390 da Embraer utiliza o motor V2500-E5 do consórcio International Aero Engines (IAE), de amplo uso comercial.

No ano 2000, o então presidente Fernando Henrique Cardoso anunciou o Plano de Fortalecimento de Controle do Espaço Aéreo Brasileiro, que com o objetivo de fazer a compra de 150 aviões, 4 helicópteros de grande porte e a modernização dos caças F-5 e AMX. Batizado de programa F-X, até teve a Rússia como um dos concorrentes, com o Sukhoi Su-35 da Rosoboronexport, competindo contra o Mirage 2000-5 Mk2 da empresa Dassault (França) em parceria com a brasileira Embraer; o F-16C Falcon da Lockheed Martin (Estados Unidos); e o JAS-39C Gripen da Saab (Suécia). O processo se arrastou, houve uma mudança de governo que ocorreria em 2002 com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, e os exigências da concorrência mudaram. O programa foi relançado com o nome de FX-2 e acabou com a escolha do Gripen NG sueco, já mencionado no início deste artigo.

Os programas de modernização dos caças F-5E/F e A-1 da FAB incorporaram a aviônica digital produzida pela empresa israelense Elbit, que também forneceu a aviônica do A-29 Super Tucano.

A Elbit, através de sua subsidiária brasileira AEL Sistemas, também desenvolveu o display de grande área (WAD) do caça F-39 Gripen da FAB.

Quanto ao setor Espacial, estratégico vide a END: o Brasil chegou a criar uma empresa binacional com a Ucrânia em 2006, a Alcântara Cyclone Space. Esta deveria servir para lançamentos espaciais a partir do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), no Maranhão. O acordo foi denunciado (desfeito) em 2015, por conta da anexação da Crimeia pela Rússia, ocorrida em 2014, e do fomento à guerra civil no Donbass.

Naquelas regiões estava o parque tecnológico que interessa ao Brasil. A parceria malsucedida entre Brasil e Ucrânia consumiu quase R$ 1 bilhão dos dois países. Embora a Ucrânia seja apenas aspirante a ingressar na OTAN, cerca de 90% dos mecanismos dos satélites que o Brasil pretende lançar de Alcântara são estadunidenses. Sem acordos de salvaguardas, o Centro de Lançamento de Alcântara é inviável.

BRICS e as transformações na geopolítica global

Neste momento em que o mundo sofre uma reconfiguração no cenário geopolítico, há um anseio pelo fortalecimento (e até apelos para a expansão) dos BRICS. O acrônimo – incialmente chamado de “BRIC”, pela junção das letras iniciais de Brasil, Rússia, Índia e China – foi formulado pelo economista Jim O’Neil, em 2001, destacando o potencial de crescimento desses países. A ideia pegou e, desde 2009, os chefes de Estado e de governo desses países passaram a se encontrar anualmente. Em 2011, por ocasião da Terceira Cúpula, a África do Sul passou a fazer parte do grupo, que adotou a sigla BRICS. Recentemente, Irã e Argentina pediram adesão ao grupo. Além disso, há poucas semanas, o presidente russo Vladimir Putin retomou a ideia de criação de uma moeda comum para o agrupamento.

O Brasil tem se beneficiado do comércio com países do grupo, sobretudo com a China. Desde 2009, esta tem sido a nossa principal parceira comercial, substituindo os Estados Unidos de uma posição ocupada por praticamente 100 anos. Atualmente, os EUA são o segundo maior parceiro comercial do Brasil.

Diante disso e das mudanças motivadas pela guerra na Ucrânia – as maiores transformações na geopolítica global desde a dissolução da União Soviética, em 1991 – alguns analistas têm defendido um maior alinhamento do Brasil com os BRICS. Em termos econômicos e comerciais, esse alinhamento pode fazer sentido, mas e em termos militares? Assuntos militares são eminentemente práticos. O que se pode fazer militarmente está, evidentemente, limitado aos meios disponíveis.

As Forças Armadas brasileiras chegaram a adquirir equipamentos de origem russa e chinesa, mas ainda em quantidades limitadas. Um exemplo é o míssil antiaéreo lançado de ombro Igla-S, usado pelo Exército Brasileiro e a FAB.

A FAB também recebeu, em 2010, 12 helicópteros de ataque Mi-35 da Rússia, que começaram a ser desativados no início de 2022. Problemas relacionados à manutenção teriam provocado a desativação prematura das aeronaves.

Já a Marinha do Brasil encomendou à China, em 2013, o Navio de Pesquisa Hidroceanográfico “Vital de Oliveira”, construído pelo estaleiro Hangtong, em Xinhui.

Mas a aquisição pelo Brasil de equipamentos mais sofisticados como carros de combate, blindados, aviões de combate e navios de guerra produzidos na Rússia e na China esbarra na cultura operacional militar brasileira, que ao longo de décadas se acostumou com uso de equipamento ocidental.

Atualmente os BRICS são um agrupamento informal, ou seja, que não têm status de organização internacional, nem de bloco econômico, militar ou diplomático. Também não são uma associação de comércio formal, como no caso da União Europeia. A despeito disso, em 2014 o grupo criou um Banco, que passou a funcionar em 2016, com capital inicial de US$ 100 bilhões.

Em termos econômicos, o Brasil tem muito a se beneficiar das relações com os demais países dos BRICS. Contudo, conforme exposto ao longo deste artigo, a decisão de alinhamento militar do Brasil vem sendo reiterada há décadas, desde que o País passou a adquirir armamento de países da OTAN, sobretudo dos EUA. Para além da questão geopolítica – a localização do Brasil no Atlântico Sul, distante dos demais integrantes dos BRICS – cabe ressaltar: assuntos militares são eminentemente práticos.

O que se pode fazer militarmente é limitado pelos meios disponíveis. O treinamento das Forças Armadas com determinados equipamentos, os armamentos e munições disponíveis, a superioridade dos meios em relação aos do oponente, o tipo de tecnologia – tudo isso importa. Logo, as decisões de política externa de um país precisam estar alinhadas às suas capacidades de defesa. Mudanças são possíveis, mas tomam tempo, vide o efeito do Malthusianismo Militar.

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