Maior porta-aviões do Brasil é impedido de deixar o país pela justiça, mas GPS aponta saída iminente de território nacional

Defensores da preservação do porta-aviões São Paulo, que querem transformá-lo em museu, conseguiram liminar para impedir a saída da embarcação, que já está perto de deixar a área marítima do Brasil

Por Lucas Altino | O Globo

Nesta sexta, membros do Instituto São Paulo/Foch, defensores da preservação do patrimônio marítimo brasileiro, correm contra o tempo para impedir que o porta-aviões São Paulo, o maior que o país já teve, deixe as águas brasileiras rumo à Europa. Na manhã de quinta (4), a embarcação começou a ser transportada para a Turquia, com destino ao estaleiro que a adquiriu no ano passado, por R$10.5 milhões. Esse leilão promovido pela Marinha, porém, foi contestado judicialmente e, ainda no fim da tarde de quinta, a justiça concedeu uma liminar ordenando que o navio volte para a Baía de Guanabara, onde ficava ancorado. Mas, segundo monitoramentos por GPS disponíveis, a determinação ainda não foi cumprida, e o porta-aviões está próximo à Região dos Lagos, perto de atravessar a fronteira brasileira, o que tornaria muito difícil a reversão do quadro.

Porta-aviões São Paulo, em 2017, quando a Marinha anunciou sua desativação — Foto: Genilson Araújo

O navio está indo em direção ao norte, e a estimativa é que saia do território nacional em até três dias, mas é possível que sua rota seja alterada. Batizado como Navio Aeródromo São Paulo, o porta-aviões da classe Clemenceau foi construído na França, entre 1957 e 1960, e chama a atenção pelas suas dimensões: são 266 metros de comprimento, e um peso de 32,8 mil toneladas. No seu país de origem, transportou 1920 tripulantes franceses em frentes de combate na África, Oriente Médio e na Europa. Em 2000, o porta-aviões foi adquirido pelo governo brasileiro, a um custo de 12 milhões de dólares e serviu à Marinha até 2014.

Com o passar do tempo, considerando o alto custo de manutenção e a evolução tecnológica no setor, que hoje privilegia porta-aviões menores, para operações com drones, a Marinha decidiu desativar a embarcação em 2017. Naquele momento, o ex-soldado da Força Aérea Brasileira, Emerson Miura, entusiasta do assunto, entrou em contato com a Marinha e propôs um projeto de transformação do navio em um museu temático, nos moldes do "Intrepid", em Nova York.

Inicialmente, conta Miura, a ideia foi bem aceita e ele fez visitas ao navio para iniciar o desenho do projeto, mas, a partir de 2018, quando houve troca de comando na Marinha, os planos mudaram, e a decisão foi pela venda do porta-aviões, para que ele fosse desmantelado. Em 2019, houve o primeiro leilão, sem êxito. E em 2021 ele foi vendido para a Sok Denizcilik, uma empresa turca.

-- No Brasil não há algo assim, como esse projeto de museu marítimo. Nossa proposta era, além do museu, oferecer cursos gratuitos e aproximas estudantes da tecnologia marítima -- explica Miúra, que, para concretizar sua ideia, fundou o Instituto São Paulo/Foch, e queria levar o museu marítimo para Santos -- Esse é o porta-aviões mais antigo que ainda existe hoje no continente. Agora só há porta-aviões de menor porte, para carregar helicópteros e drones. Somos o país do Santos Dummont, deveríamos preservar esse patrimônio.

Depois da compra, a empresa turca possuía 120 dias para retirar o porta-aviões do Brasil, período que terminou em setembro do ano passado e que não foi cumprido. Além disso, o Instituto alegou uma série de irregularidades processuais na execução do leilão, como negativa de recurso e inversão de fases, e também acusou que não teria havido as devidas inspeções ambientais, necessárias pelo fato do navio possuir toneladas de amianto em seu interior, uma substância tóxica e perigosa, cujo estado de armazenamento não há maiores informações atualmente.

-- Nós não sabemos como está o amianto hoje. Na última visita que fiz ao navio, em 2018, o material ainda estava encapsulado, mas hoje não sabemos seu estado. O amianto é uma substância que penetra a pele e pode causar câncer, seu transporte deveria ser feito com muito zelo -- diz Miura, que explica que amianto era bastante usado em navios na década de 60, como isolante térmico.

O próprio Emerson Miura foi impedido de participar do leilão , sob a justificativa que só seriam aceitos compradores interessados em reciclar o porta-aviões, e a finalidade de Miura seria reaproveitá-lo como museu. No contrato com os franceses, a Marinha aceitou a condição de consultar a Marinha Francesa antes de se desfazer do navio, já que se trata de um equipamento bélico, e houve a autorização para o desmantelamento. Segundo Miura, a Marinha costuma responder que o projeto do museu não estava autorizado pela França, mas ele destaca que nunca houve essa consulta.

Inicialmente, o Instituto não conseguiu a liminar para anular o leilão, mas, com a notícia de que o porta-aviões começou a ser transportado na quinta, o juiz federal Wilney Magno de Azevedo deferiu a liminar para que o a embarcação "seja impedida de sair do local em que se encontra, até a manifestação do Ministério Público Federal no processo e até que haja autorização judicial em sentido contrário". Como a ordem não foi cumprida, na tarde desta sexta foi expedida um mandado de segurança, com a mesma finalidade.

Outra acusação é de que o transporte não teria respeitado o procedimento, como o aviso prévio 72 horas antes. O porta-aviões estava atracado na Ilha das Cobras, na Baía de Guanabara. Procurada, a Marinha não se manifestou. A Sok, que não conseguiu sequer ser intimada no processo, não foi localizada. Já o MPF disse que não foi intimado da decisão.

Parceria em litígio e irregularidades no transporte de amianto


Para participar do leilão, a Sok, em respeito à legislação brasileira, já que não tem atividades no país, precisaria ter a parceria de alguma agência marítima nacional. Foi feito, então um contrato com a Cormack, que foi quem, de fato, arrematou o porta-aviões São Paulo, em 2021. Na sequência, a Cormack fez uma transferência de posse para a empresa turca.

Mas a parceria não terminou bem. No ano passado, a Sok rompeu o contrato entre as partes unilateralmente. As divergências começaram por causa da forma que a empresa turca lidou com o amianto presente na embarcação. Como estava desativado, o porta-aviões é considerado, oficialmente, um "casco de navio" e, para exportação, é necessário, dentre outros fatores, que o amianto - substância banida no Brasil - seja descartado.

Segundo Alex Christo Bahoz, advogado da Cormack Agência Marítima, vários procedimentos foram desrespeitados. O Ibama, que deveria realizar a inspeção in loco, só fez um relatório baseado nas informações dadas pela Sok, dentre elas, a quantidade de amianto no casco, e liberou a exportação.

-- Esse navio tem quantidade excessiva de amianto a bordo. Não poderia sair do país assim. Isso contraria a convenção da Basileia ( convenção de 1989 que tratou de mecanismos de controle nas importações de resíduos de disco, da qual o Brasil foi signatário) -- afirma Bahoz.

Esse caso, inclusive, vem gerando protestos de ONGs turcas, que questionam a compra de uma embarcação repleta de amianto, como informou Ancelmo Góis. Bahoz diz, ainda, que cerca de 50 funcionários tiveram que trabalhar no porta-aviões, para preparar o transporte até a Turquia. Portanto, sob condições de risco.

-- Amianto é altamente cancerígeno e as partículas ficavam suspensas no ar, no navio. Só um compartimento possuía 17 toneladas. A Comarck divergiu principalmente sobre isso, poque a Sok não deu destinação ao amianto. Quando foi interpelado, o Ibama disse que a substância seria retirada ao chegar na Turquia, o que fere a legislação.

Para finalizar, Bahoz ainda afirmou que a certificação de radiação do porta-aviões, outra exigência, foi emitida da Turquia, novamente sem uma inspeção in loco.

-- Esse navio é da década de 60 e passou por testes nucleares. As chapas conseguem absorver radiação. Inclusive, o navio Clemenceau, irmão do São Paulo, possuía radiação quando foi desmontado na Escócia.

Procurado, o Ibama ainda não se manifestou.

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