A brasileira que salvou judeus do Holocausto

Como chefe da Seção de Passaportes do consulado em Hamburgo, Aracy Guimarães Rosa conseguiu liberar vistos de judeus para o Brasil durante a Segunda Guerra. A diplomata ficou conhecida como "o anjo de Hamburgo".


Edison Veiga | Deutsch Welle

Tempos de perseguição fazem heróis, muitos deles anônimos. Assim como o industrial alemão Oskar Schindler (1908-1974) – cuja história ficou famosa devido ao filme de Steven Spielberg A Lista de Shindler –, o Brasil também teve sua heroína dos tempos do Holocausto. Trata-se de Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa (1908-2011), que, como chefe da Seção de Passaportes do consulado brasileiro em Hamburgo, na Alemanha, conseguiu liberar vistos para judeus fugirem da perseguição nazista.


Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa
Aracy, que foi casada com o escritor João Guimarães Rosa, em foto de 1936

No Brasil daquele período, estava em vigor a Circular Secreta 1.127, uma lei que restringia a entrada de judeus no país. Quando despachava com o cônsul geral, Aracy simplesmente ignorava essa legislação, colocando os pedidos de judeus em meio à papelada para que fossem aprovados automaticamente pelo diplomata, sem questioná-la.

Até agora, segundo pesquisas do Arquivo Virtual Arqshoah: Holocausto e Antissemitismo, do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (Leer) da Universidade de São Paulo (USP), sabe-se que Aracy salvou 17 famílias do nazismo. Mas a quantidade pode ser bem maior. De acordo com a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, coordenadora do Leer, o número total de judeus salvos pode vir a ser revelado em novos depoimentos de sobreviventes e familiares – algo que ela coleta sistematicamente em seu trabalho de pesquisa.

"Os testemunhos registrados pela nossa equipe indicam que corria a notícia entre os judeus que fugiam das perseguições nazistas de que Aracy facilitava a liberação dos vistos para o Brasil. Uma das táticas adotadas para camuflar suas ações era a de omitir o carimbo da letra J, em vermelho, nos passaportes, marca imposta pelo governo alemão como forma de identificação do judeu, classificado como ‘raça inferior'", afirma a pesquisadora. "Ao misturar tal documentação entre os papéis a serem assinados pelo cônsul, Aracy procurava não deixar vestígios que os comprometessem."

Era um risco, mas não foi o único. "Aracy, em diferentes momentos, assumiu tarefas perigosas, escondendo e transportando judeus à noite em seu carro, como narrado por alguns sobreviventes", relata a pesquisadora.

Diretora do Museu Judaico de São Paulo, a historiadora Roberta Alexandr Sundfeld concorda que devem ser mais os beneficiados pela brasileira. "Como ela não deixou traços de suas atividades – só ficamos sabendo por depoimentos muitos anos depois – é bem possível que haja outros benfeitores."

Uma mulher à frente de seu tempo

Nascida em Rio Negro, no Paraná, Aracy tinha pai português e mãe alemã. Seu primeiro casamento, em 1930, foi com um alemão. Durou apenas cinco anos. Poliglota – dominava português, inglês, francês e alemão –, conseguiu o emprego no consulado brasileiro de Hamburgo.



Aracy (dir.) e João Guimarães Rosa (esq.) com diplomatas na sede do consulado-geral do Brasil em Hamburgo
Aracy (dir.) e João Guimarães Rosa (esq.) com diplomatas na sede do consulado-geral do Brasil em Hamburgo

"Aracy era uma mulher à frente do seu tempo: separada, com um filho para cuidar, mudou-se para a Alemanha em 1934, e foi trabalhar no setor de vistos em uma época em que poucas mulheres trabalhavam. Desafiou as ordens enviadas pelo governo brasileiro e concedeu vistos colocando sua própria carreira em risco. Muitos anos se passaram, ela voltou ao Brasil, e quando indagada sobre o motivo de suas ações, respondeu simplesmente: 'Porque era justo'", comenta Sundfeld.

Foi em Hamburgo que Aracy conheceu o escritor João Guimarães Rosa (1908-1967), que era cônsul adjunto. Apaixonaram-se e casaram-se. Eles ficaram na Alemanha até 1942.

"Anotações deixadas por Guimarães Rosa em seu diário escrito durante o período mostram que a questão dos judeus perseguidos pelos nazistas fazia parte das preocupações do casal", aponta Tucci Carneiro. Em 1956, quando publicou sua obra-prima Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa dedicou-o a ela: "A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro."

"Foi uma mulher bem corajosa. Filha de mãe alemã, ousou peitar o governo Getúlio Vargas viabilizando vistos para refugiados judeus do nazismo", comenta o historiador Reuven Faingold, PhD em História do Povo Judeu pela Universidade Hebraica de Jerusalém e diretor educacional do Memorial da Imigração Judaica e do Holocausto em São Paulo. "Sabemos que são poucos os brasileiros que afrontaram com tanta determinação e coragem a política acentuadamente antissemita disseminada pelo governo Vargas."

"Anjo de Hamburgo"

Apelidada de O Anjo de Hamburgo, Aracy foi reconhecida em vida pelo Yad Vashem, o memorial do Holocausto em Israel. Em 8 de julho de 1982, teve seu nome incluído no Jardim dos Justos – honraria que coube a apenas mais um brasileiro, o diplomata Luiz Martins de Souza Dantas (1876-1954), que atuava na França durante a Segunda Guerra. Em 1993, ambos também foram lembrados pelo Memorial do Holocausto em Washington.



Passaporte
Segundo pesquisadora, Aracy omitia o carimbo da letra J, em vermelho, nos passaportes, usada para identificar judeus

Nesta quarta-feira (11/12), Aracy ganha mais uma homenagem: ela passa a estampar um selo dos Correios. É a sexta personalidade da série Mulheres Brasileiras que Fizeram História, que já homenageou, entre outras, a farmacêutica e ativista Maria da Penha e a escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977).

"É uma homenagem absolutamente merecida. Aqueles que salvam vidas de inocentes merecem ser reverenciados e divulgados", afirma o rabino David Weitman. "A história não pode esquecê-los."

Tucci carneiro acredita que a iniciativa dos Correios ajudará a tornar a história dela mais conhecida. "Coloca em circulação informações históricas até então restritas a um público menor", avalia.

"Serve também de estímulo ao ato de narrar a ser assumido pelos sobreviventes salvos por Aracy, ou seus familiares, que até então não deram o seu testemunho. O selo é também um ato pedagógico que ensina, através da imagem de Aracy, sobre a importância dos atos de solidariedade em tempos sombrios."

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