Putin controla espólio militar e econômico do Grupo Wagner após morte de Prigojin

Defesa da Rússia disputava espaço com Prigojin, agora morto, também em contratos na África


Igor Gielow | Folha de S.Paulo

São Paulo - A suspeita morte do líder mercenário Ievguêni Prigojin foi antecedida por uma escalada na disputa dele com a cúpula da Defesa acerca das atividades de seu Grupo Wagner fora da Rússia — de onde havia sido banido após liderar um inédito motim contra os generais do presidente Vladimir Putin, no fim de junho.

Bandeira do Grupo Wagner em memorial improvisado para Prigojin no centro de Moscou - Natalia Kolesnikova - 27.ago.2023/AFP

Prigojin morreu na quarta (23), após o jato Embraer Legacy 600 em que estava cair abruptamente durante um voo entre Moscou e São Petersburgo, com um padrão que sugere uma violenta explosão a bordo ou uma improvável falha catastrófica em um modelo conhecido por alta confiabilidade.

Os dedos acusadores no Ocidente e mesmo entre apoiadores de Prigojin voltaram-se para Putin, que com sua autonomia de czar é visto como o início e o fim de qualquer crise na Rússia. O Kremlin classificou de mentira a ilação, amparada na longa lista de desafetos do presidente mortos de forma estranha ao longo dos anos, mas o cipoal de interesses do mercenário adensa o roteiro.

Desde o motim, Prigojin reuniu-se ao menos uma vez com Putin, cinco dias após o fim da revolta. Eles se conheciam desde os anos 1990, e o empresário ganhou o apelido de "chef de Putin" devido aos serviços de alimentação prestados ao governo. Agora, o Kremlin passou a lembrar que o Grupo Wagner, surgido em 2014, nunca teve existência legal na Rússia — apesar de ganhar do governo, de acordo com o próprio presidente, US$ 1 bilhão anuais (cerca de R$ 5 bilhões) para suas atividades.

Mas nada se falou sobre as atividades externas do grupo, sua mina de ouro — em alguns casos, como no Mali, uma metáfora quase literal, dado que cerca de 2.000 soldados do grupo trabalham para o governo protegendo a extração do metal. Eles chegaram em 2021, chutando rivais franceses da função, e em troca o Wagner ganhou licenças próprias de mineração e exportação.

É um padrão nas operações nos sete países africanos em que é confirmada a presença do grupo, iniciada em 2018 no Sudão e na República Centro-Africana. No segundo país, o Wagner age como guarda pretoriana da elite, recebendo para tal permissões sobre minérios, madeira e até para produzir cerveja.

Até 2021, segundo uma investigação feita pelo jornal britânico Financial Times, gerou US$ 250 milhões (R$ 1,25 bilhão) em receitas para o grupo. Não é por acaso o olho gordo de atores russos desde que Prigojin assinou sua sentença de morte política ao desafiar Putin, ainda que seu alvo fosse o ministro Serguei Choigu (Defesa) e sua intenção de enquadrar os mercenários em ação na Ucrânia.

As desavenças entre ambos eram públicas acerca do manejo do conflito, visto como desastroso pelo Wagner. Outros críticos, como o líder tchetcheno Ramzan Kadirov, contudo, recuaram do embate direto.

Segundo uma pessoa próxima da cúpula militar disse à Folha, a corrida agora é dupla. Primeiro, Putin quer asseverar controle total sobre os talvez 25 mil homens do Wagner — nada é certo sobre números da organização nebulosa de Prigojin, que mantém empresas para controle de fluxo de capital sob o radar nos Emirados Árabes Unidos e outros países livres de sanções ocidentais devido à Guerra da Ucrânia.

Esse primeiro passo foi dado com o decreto segundo o qual todos os integrantes do Wagner têm de jurar fidelidade à Rússia, publicado no sábado (26). Aqui, é indiferente se alguém mandou matar Prigojin, ou mesmo quem foi: o recado é claro sobre lealdades e o que pode acontecer com quem as fere — qualquer que fosse o objetivo do motim, ele foi um desastre político para Putin.

Ele foi direcionado principalmente aos combatentes aninhados sob a ditadura aliada na Belarus, onde são um elemento de desestabilização para as fronteiras leste da Otan, a aliança militar ocidental. Repetindo o que dizem desde que os mercenários foram levados para lá como parte do pacto para o fim da crise, Polônia e Lituânia afirmaram que fecharão suas fronteiras se houver movimentos do Wagner perto delas.

A segunda parte é mais complexa e já estava em curso, que é a disputa pelo espólio do mercenário. Proibido de atuar na Rússia como punição pela rebelião frustrada, Prigojin passou a se dedicar a salvar seu império internacional, na aparência poupado por Putin. Na aparência, pelo visto. Na véspera da queda do avião, o influente Iunus-Bek Ievkurov, 1 dos 10 ministros-adjuntos da Defesa do país, fez uma inédita visita à conflagrada Líbia, onde a Rússia apoia a facção do senhor da guerra Khalifa Haftar há anos.

Até então, o serviço de Moscou era prestado pelo Wagner, que mantém 2.000 homens no país, inclusive com apoio de caças. De acordo com o relato unânime na mídia árabe e russa, Ievkurov avisou que os mercenários sairiam do país até setembro e que forças regulares de Moscou os substituiriam.

Antes de voar para a Líbia, ele havia dado o mesmo recado ao chefe da Defesa da Síria, Ali Mahmoud Abbas. Putin interveio em 2015 na guerra civil local, salvando a ditadura de Bashar al-Assad. As Forças Armadas já haviam expulsado o Wagner da sua base principal, o aeródromo de Hmeimin, e agora querem ver os mercenários longe do país.

O conhecido jornalista investigativo Andrei Zakharov disse no Telegram suspeitar que o mesmo será feito nos outros mercados do Wagner na África. O incômodo foi visível: Putin disse que Prigojin morreu após voltar de uma viagem ao continente, que observadores da cena russa disseram ter sido devido às movimentações de Ievkurov.

Além disso, há a questão da fortuna amealhada por Prigojin, que está dispersa em um pântano de offshores e empresas de fachada. Segundo Venda Flebab-Brown, diretora de Atores Armados Não Estatais do Instituto Brookings (EUA), só em contratos oficiais o Wagner ganhou ao longo de sua curta história US$ 20 bilhões (R$ 100 bilhões).

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