Políticas da União Europeia promovem brutalidade sistemática contra migrantes e refugiados

Relatório de MSF detalha as terríveis consequências de políticas migratórias restritivas e violentas.


Médicos Sem Fronteiras

“Meu irmão e eu viemos a pé do Afeganistão e tentamos atravessar a fronteira entre a Itália e a França para nos juntarmos à nossa família na Alemanha. No caminho da montanha, à noite, a polícia começou a nos perseguir e, ao tentar escapar, caímos em um barranco... perdemos tudo o que tínhamos. Tivemos que atravessar a Turquia, a Grécia e os Bálcãs para chegar a um lugar onde nos sentíssemos seguros. Não imaginávamos que teríamos de continuar fugindo mesmo depois de chegarmos à Europa.”

Em 16 de novembro de 2021, 99 pessoas foram resgatadas no Mar Mediterrâneo pela equipe de MSF. © Virginie Nguyen Hoang/Collectif HUMA

As palavras acima são de um paciente de Médicos Sem Fronteiras (MSF) no projeto em Ventimiglia, na Itália, descrevendo o que ele precisou enfrentar como resultado da crise política que vem se desenrolando na Europa e em suas fronteiras nos últimos anos.

As equipes médicas e humanitárias de MSF têm tratado as consequências devastadoras das políticas e práticas migratórias restritivas e têm testemunhado seu custo humano. Atuamos em lugares como a Líbia, os Bálcãs, o Mar Mediterrâneo Central, a Polônia, a Grécia e a Itália, que se tornaram laboratórios e campos de testes para políticas e práticas cada vez mais prejudiciais. O que vimos e nos foi dito entre agosto de 2021 e setembro de 2023 foi reunido no relatório Death, despair and destitution: the human costs of the EU’s migration policies* (Morte, desespero e miséria: os custos humanos das políticas de migração da União Europeia).

Interceptados e aprisionados


As pessoas que buscam segurança muitas vezes são presas de forma violenta em países que não pertencem à União Europeia (UE), mas que têm acordos de cooperação migratória com a UE, sem acesso a cuidados de saúde e proteção. Há, por exemplo, sérias preocupações em relação à conduta da guarda costeira da Líbia durante as interceptações no mar, o que, em alguns casos, colocou em risco a vida de pessoas em perigo. A violência durante as interceptações foi regularmente relatada a MSF por pacientes na Líbia e no Geo Barents, nosso navio de busca e resgate.

De 2016 a 2021, o número de pessoas que tentaram sair da Líbia de barco e que foram devolvidas à força ao país aumentou, após a retirada da União Europeia e de seus Estados-membros das operações de busca e resgate e a declaração de uma Região de Busca e Resgate da Líbia, em 2017. A UE investiu mais de 70 milhões de euros na capacidade de gerenciamento de fronteiras da Líbia.

“Saí para o mar com 83 pessoas, em um bote inflável branco. Uma mulher estava grávida. Às 7h30 da noite, vimos os líbios atrás de nós. Eles se aproximaram de nós e disseram: ‘Parem, ou vamos atirar’. Dissemos: ‘Não, não podemos parar’. Eles nos cercaram enquanto tentávamos fugir. O capitão se recusou a parar. Eles atiraram no barco para esvaziá-lo. A água entrou. Então não tivemos escolha”, relatou um jovem de 18 anos de Camarões, resgatado por MSF no Mar Mediterrâneo, em 2022.

“Eles jogaram uma corda e ficaram em cima de nós, gritando e nos insultando. Ajudamos as mulheres a entrar no barco líbio. Tivemos que subir rapidamente. A água estava entrando no barco, e ele estava afundando na água. Dois irmãos, um malinês e um guineense, se afogaram assim”, concluiu.

Ao retornar à Líbia, as pessoas geralmente são transferidas diretamente para centros de detenção. Os migrantes e refugiados na Líbia são detidos arbitrariamente e mantidos em centros de detenção não regulamentados, onde não há acesso garantido a cuidados de saúde. Entre janeiro de 2022 e julho de 2023, MSF ofereceu 23.769 consultas de saúde primária em oito centros de detenção no oeste da Líbia. As equipes de MSF atenderam pessoas em situações extremamente vulneráveis, incluindo crianças desacompanhadas, pessoas com deficiências físicas ou doenças crônicas e sobreviventes de tráfico humano e tortura.

O número de pessoas interceptadas pela guarda costeira da Tunísia também aumentou nos últimos anos. Além de serem interceptadas no mar e devolvidas à força para a Tunísia, as pessoas também têm sido expulsas para Líbia e Argélia, países vizinhos. No Níger, equipes de MSF apoiaram pessoas expulsas da Tunísia para a Argélia e empurradas para o deserto nigerense.

Bloqueados nas fronteiras da União Europeia


Apesar dos esforços para conter as pessoas em países fora da UE, elas continuam a fazer travessias marítimas e terrestres em busca de segurança e proteção. Nas fronteiras marítimas e terrestres da União Europeia, entretanto, elas se deparam com cercas de arame farpado e com uma violência física brutal, em vez de resgate e assistência. Atualmente, os muros e cercas das fronteiras da UE se estendem por mais de 2 mil quilômetros.

Pacientes de MSF relatam que foram submetidos a repetidos retornos forçados ao longo de suas jornadas. Esses incidentes geralmente são acompanhados de agressão física, detenção, humilhação verbal, incluindo insultos raciais e linguagem depreciativa, e outras formas degradantes de tratamento. Esses atos são realizados principalmente por agentes estatais. A prática de repetidos retornos forçados em países como Polônia, Grécia e Hungria expôs as pessoas a níveis inaceitáveis de risco à saúde e ao bem-estar.

“Como eu estava doente, fiquei no hospital por três dias. Eu realmente pedi proteção, mas, no final, eles me devolveram a Belarus sem nada, sozinho. E eu não sabia como me orientar, mas encontrei pessoas na estrada […] Eu disse ao médico que queria ficar aqui, que estava pedindo asilo, mas ele me disse: ‘Sinceramente, não sei o que vai acontecer com você’, e os guardas da fronteira foram ao hospital e me prenderam por três horas. Depois disso, voltei para a fronteira”, relatou um paciente de MSF em Belarus, em 2023.

Além do risco de ferimentos causado pelo muro entre Belarus e a Polônia, MSF testemunhou também que as pessoas ficam presas na área entre as duas fronteiras – chamada pelos pacientes de “zona da morte” – por períodos prolongados, expostas a condições climáticas adversas e à violência, o que agrava os problemas de saúde física e mental existentes.

Punidos e contidos


O modelo de “hotspot” (ou ponto de acesso, na tradução) estabelecido na Grécia e na Itália para conter e identificar rapidamente as pessoas que chegam às fronteiras, para implementar procedimentos rápidos e facilitar os retornos forçados, tem sido, há muito tempo, a base do gerenciamento de migração da União Europeia.

Ao longo dos anos, os hotspots têm se caracterizado por gerar um estado contínuo de crise e sofrimento humano, com deficiências constantes em termos de proteção e acesso a serviços essenciais, como água, saúde e recepção segura. No entanto, a UE e os governos nacionais têm se empenhado em reforçar essa abordagem.

“Todos estão enfrentando um nível básico de sofrimento psicológico, até mesmo os jovens. Sempre com os mesmos sintomas: dores no corpo, dissociação, depressão, distúrbios do sono. As pessoas se sentem totalmente sozinhas. Elas se sentem humilhadas por viverem nessas condições”, explica um psicólogo de MSF em Lesbos, na Grécia.

Entre agosto de 2021 e agosto de 2023, as equipes de MSF em Samos, na Grécia, ofereceram 2.900 consultas de saúde mental, durante as quais 34% dos pacientes relataram ter experimentado sintomas de trauma, enquanto 28% apresentaram sintomas relacionados à ansiedade. Transtornos depressivos, estresse pós-traumático e transtornos de ansiedade foram prevalentes em todos os grupos populacionais, inclusive entre as crianças. Situações diárias de estresse, como condições de vida precárias, procedimentos administrativos complicados, medo de deportação e exposição à insegurança são os principais fatores que afetam a saúde mental das pessoas.

Negligência sistêmica, exclusão e miséria


Em toda a UE, as pessoas – tanto adultos quanto crianças – são cada vez mais excluídas dos sistemas de recepção e proteção e forçadas a viver em condições precárias. Países como a Bélgica, a França e a Holanda implementaram políticas de recepção cada vez mais hostis com o objetivo de impedir os chamados movimentos secundários. Um exemplo disso é o fato de que o Secretário de Estado para Asilo e Migração da Bélgica e a agência de recepção belga (a Fedasil), foram condenados mais de 8 mil vezes por tribunais nacionais e mais de 2 mil vezes pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos por não fornecerem abrigo às pessoas migrantes.

“Todos os dias, a polícia confisca os cobertores e as barracas que as organizações voluntárias nos fornecem. Eu dormia na chuva, no frio. Tentamos nos aquecer acendendo uma fogueira, mas a polícia veio apagá-la com extintores de incêndio e jogou água em nós”, relatou um paciente de MSF em Calais, na França, 2023.

Além disso, os estados europeus, em particular a França, a Bélgica e o Reino Unido, estão usando cada vez mais as avaliações de idade como uma forma adicional de negar o acesso ao status de proteção a pessoas que buscam segurança e outras proteções específicas concedidas a crianças que viajam sozinhas. Na França, MSF presta assistência a menores desacompanhados não reconhecidos como tal durante a avaliação de idade.

Políticas hostis acrescentam um fator de estresse significativo, privando os menores de proteção, status administrativo e representação legal. Quando chegam à França, muitos deles permanecem fora do sistema de proteção ou têm que esperar muitos meses até que possam se beneficiar dos serviços sociais e de proteção. Sem qualquer acesso a acomodação, eles enfrentam precariedade, isolamento e falta de moradia.

Essas condições de vida inseguras os deixam vulneráveis aos riscos adicionais à saúde decorrentes da má nutrição, do clima frio, da violência, da exploração sexual, do tráfico e do vício. Cerca de 15% das crianças desacompanhadas que recebem apoio de saúde mental de MSF em Paris e que relataram ter sofrido violência disseram que isso aconteceu com elas na França.

Durante anos, MSF tem soado o alarme sobre o custo humano das políticas migratórias europeias. Emitimos inúmeros relatórios, comunicados à imprensa e cartas propondo recomendações para garantir a proteção, a assistência e o acesso a cuidados oportunos e de qualidade para as pessoas que tentam chegar à Europa. Apesar disso, as oportunidades de mudanças significativas foram desperdiçadas, o que levou a uma rede de práticas violentas no centro da política de migração da UE.

A UE precisa enfrentar urgentemente as questões que estão na raiz dessa violência, e isso exige uma mudança urgente e fundamental de rumo. A normalização da violência não dissuadirá as pessoas de tentar chegar à Europa, mas levará a sofrimento e morte desnecessários.

“Voltar para a Síria? Não posso voltar para a Síria. É isso. Não há como voltar atrás. Continuo em frente. Tentei sair por cinco meses… Não consigo descrever a Líbia para vocês. Se eu viver pelos próximos 10 anos, não terei terminado de descrever o que vi na Líbia”, relatou um homem sírio resgatado pelo navio Geo Barents em 2023.

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